Facto indesmentível: "Avatar" só é um filme de sucesso antecipado e agora garantido por tudo aquilo que os extraordinários avanços tecnológicos providenciam.
No entanto e por isso mesmo...
É também um filme entusiasmante, vibrante, viciante e que sabe bem ver. É realmente uma experiência original e revolucionária, e compreende-se porque insistiu James Cameron em esperar pela tecnologia necessária à sua concretização. Um filme como "Avatar", protagonizado por pessoas de carne e osso - índios e cowboys, por exemplo, e porque na verdade é disso mesmo que o filme fala - não tinha público. Mas isto faz parte dos pontos negativos do filme e a que voltarei daqui a uns parágrafos.
Para já, os pontos positivos. Aliás, muito bons. "Avatar" é, como já tinha dito, viciante. Viciante porque Pandora, o planeta onde a acção tem lugar, é arrasador. De tal forma que me senti como que a ver as primeiras imagens reais da descoberta de um novo planeta por alguma missão espacial da NASA. Porque "Avatar" tem um magnífico design de produção... que não existe. Porque nada existe verdadeiramente ali a não ser um punhado de actores e alguns cenários. De resto, tudo é obra de um magnífico trabalho digital. Em suma, devia haver um prémio especial para a imaginação do exército de criadores que inventaram Pandora e toda a sua fauna e flora. Normalmente os prémios técnicos, nomeadamente o Oscar, premeiam a imaginação de quem cria efeitos especiais, guarda-roupa e design de produção, mas também a sua execução. Este caso é complexo. Deve "Avatar" receber, por exemplo, um Oscar para efeitos especiais? O desenho animado digital é realmente um efeito especial? Para além disso, a perfeição ainda está longe. Se as imagens, detalhes e movimentos dos Na'Vi são impressionantes bem de perto, a verdade é que tudo o que se afasta do ponto de vista do espectador continua a parecer um básico desenho animado. E isso também é importante num filme quase totalmente baseado na tecnologia digital. Para lá da técnica - que não é um assunto menor, pelo contrário - "Avatar" é um bom filme de acção, ritmado, enérgico, empolgante e que nos prende à cadeira, mas que não evita resvalar para um certo adormecimento, aqui e ali, e para uma ou outra correria desenfreada no seu argumento. Como se Cameron não pudesse ou não quisesse fazer um filme de mais de três horas, em vez de um com mais de duas. Algumas situações são metidas um pouco a pressão ou começam e terminam rapidamente, quase sem se perceber a sua utilidade dramatúrgica. Interessa por isso perceber se existe uma versão de realizador e se essa versão vai ser algum dia disponibilizada. Porque o ponto mais fraco do filme é mesmo o seu argumento, outro ponto a que voltarei mais adiante. O que interessa mesmo é o ambiente do filme, partilhado pela espartilhada história, pelo conjunto de personagens, algumas pouco interessantes ou exploradas e pelo planeta Pandora, a jóia da coroa de Cameron e da sua obra-prima. É um ambiente a que não conseguimos fugir ou desviar a atenção e é esse o principal truque do filme. Somos de tal forma absorvidos pelas florestas e pelas criaturas de Pandora, que quase nos sentimos como se estivessemos lá dentro. E se o 3D tem alguma funcionalidade é essa; manter-nos dentro de filme como se fôssemos mais uma personagem. Porque são poucas, na verdade, as situações em que os efeitos 3D nos entram literalmente pelos olhos dentro.
Nesse sentido, será importante perceber se a versão normal do filme, ou seja, sem 3D, consegue criar esse estonteante efeito de envolvência. Porque se residir aí, como tantos já acusaram, a verdadeira vantagem de "Avatar", então o mercado DVD poderá não ser um ponto a favor de Cameron na conquista dos dólares de que tanto necessita para provar que é um realizador renascido. O público significa dinheiro, e pouco importa a simpatia com que vai tratar o filme; importante, isso sim, é quantas vezes consegue "Avatar" ultrapassar a enormidade de dinheiro que custou. E não faltam a James Cameron formas de ganhar dinheiro. Um filme destes é uma fábrica de facturação brutal. Jogos para consolas, banda desenhada, bonecada e mil e um artefactos são garantias financeiras como só um projecto desta dimensão e características pode ter. Já para não falar na mais que obrigatória sequela...
Há um sem número de micro-leituras que se podem fazer ao ver "Avatar". Não vou enumerar todas, porque seria cansativo e porque retiraria grande parte do encanto que é descobrir este filme pela primeira vez. Uma dessas leituras tocou-me especialmente, e julgo não estragar nada ao mencioná-la aqui. O filme fala da capacidade de um humano poder ocupar um avatar, ou seja, um outro corpo, criado a partir do seu DNA. Neste caso, um avatar híbrido que resulta da combinação do DNA humano com o DNA dos Na'Vi, os nativos de Pandora que recusam todas as tentativas de colonização. Para usarem o seu avatar, os humanos têm de adormecer. Ou seja, só quando sonha, pode Jake Sully - personagem principal interpretado por Sam Worthington - viver entre os Na'Vi e ser literalmente outra pessoa. É um falso patamar onírico, o que Cameron aborda, e tudo em Pandora parece apontar para o mundo dos sonhos. E essa dualidade entre o mundo dos sonhos e o pesadelo que está à espreita desde o início do filme, é um dos poucos pontos favoráveis de um argumento demasiado curto.
Se Jake Sully é a personagem principal de "Avatar", Neytiri é sem dúvida a mais importante. Por várias razões. Desde logo porque é a que nos comove e a que nos conduz ao coração e à alma de Pandora - outro elemento incompreensivelmente menosprezado por Cameron. Neytiri é a personagem digital que (estando ainda distante) mais se aproxima da definição de actriz a sério. As suas expressões e o desempenho da actriz Zoë Saldana - a Uhura do último Star Trek - tornam-na na única personagem digital que alguma esteve perto de um prémio de interpretação. E essa é outra questão fundamental colocada por "Avatar": poderá algum dia isso acontecer? Porque Neytiri comove-nos, empolga-nos e apaixona-nos, irremediavelmente, e é inquestionavelmente o melhor que "Avatar" tem. De todas as personagens, é aquela que mais rapidamente nos faz esquecer de que na verdade não existe. No entanto, só existe porque a magnífica tecnologia ao serviço do filme a criou e lhe deu uma credibilidade até hoje apenas imaginada. George Lucas deve estar em casa, envergonhado das criações que apresentou ao mundo na recente saga Star Wars enão deve arriscar a realização de um filme nos próximos dez anos. Como já disse, o argumento é mesmo o mais fraco elemento de "Avatar". O que não se entende. Especialmente se tivermos em conta os tais 14 anos de planeamento e concretização. Ainda mais se considerarmos que Cameron contou com algumas das melhores e mais conceituadas empresas de efeitos especiais e tecnologia digital - a Industrial Light & Magic de Lucas, a Weta (famosa pelo seu trabalho na saga Senhor dos Anéis), a Stan Winston Studio e a Framestore - o que obviamente lhe deu o tempo necessário para trabalhar numa história mais interessante e complexa. O problema é que James Cameron quer fazer tudo e são famososo os episódios que mantém com quase todas as equipas ao serviço do seu trabalho, enfernizadas pela mania de estar sempre presente em todas as fases da produção. Talvez passe por aí a explicação... Porque há muita coisa em "Avatar" que já havíamos visto antes. Uma nave e um exoesqueleto de guerra que têm muitas parecenças com uma nave e um exoesqueleto de carga do filme "Aliens", situações de acção ou romance que desde sempre fizeram parte do imaginário de Hollywood, pequenos gags (poucos, felizmente) ou até diálogos, são só alguns exemplos da falta de imaginação de quem escreveu "Avatar" (Cameron). Isto é, dentro da revolução criativa que é "Avatar", alguém escorregou monumentalmente na hora de criar um argumento igualmente original. Se quiserem um exemplo válido, tentem lembrar-se do que acontecia no belíssimo filme de Kevin Costner, "Dances With Wolves". É que a história é exactamente a mesma. E isso é imperdoável.
Seja como for, "Avatar" é mesmo uma revolução e a diversos níveis. Pode não ser a salvação de que Hollywood necessitava, mas antes mais um problema que a indústria terá de resolver. E as questões que levanta não são de menosprezar. Por exemplo, num filme em que 80% da acção e das personagens são criadas digitalmente - e que quase não necessitava de actores de carne e osso - quanto poderá ser pago a um actor principal que acaba por ser um actor secundário? Por muito que ele possa ser essencial à tecnologia de motion capture que é a base das restantes personagens? Como será o cinema que depende desta tecnologia digital pós "Avatar"? Ninguém quer gastar assim tanto dinheiro na produção de um filme, e toda a gente tem receio, agora, de lançar uma obra que obviamente ficará a aperder para o trabalho de Cameron. Até porque a comparação será para sempre obrigatória, e este filme é uma revolução incomparavelmente maior do que a que foi "Jurassic Park", por exemplo.
Uma coisa é certa: de agora em diante, james Cameron não mais será conhecido como "o realizador de Titanic". A partir de agora, os filmes de Cameron serão apresentados como sendo "do realizador de Avatar". E isso é bem mais significativo do que parece.
Por fim, uma última palavra ao João Montenegro e ao trabalho que ele levou a cabo na Framestore. Parabéns amigo, deves estar orgulhoso. Tens que estar orgulhoso. Eu estou. E fico feliz por ver o teu nome a correr ao lado de milhares de outros, responsáveis por uma obra magnífica. Este não é o ponto alto da tua carreira, claramente. No limite, esse ponto alto será apareceres no making of que fará parte do DVD. Fico à espera, e temos muito que falar. Prometo não te sacar nenhum segredo.