kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

terça-feira, março 24, 2009

TIO CLINT





Já há umas semanas, e graças aos milagres da pirataria informática, tive a oportunidade de ver o filme mais recente do mestre Clint Eastwood, "Gran Torino". Não escrevi na altura nada acerca dele porque optei por ver o outro que ainda sobrevive nas nossas salas, "The Changeling" ("A Troca"), e escrever sobre os dois em conjunto.

Já aqui o disse várias vezes, Clint Eastwood é um dos últimos realizadores clássicos, académico, que insiste numa forma de filmar que faz lembrar uma época dourada de Hollywood que não sobreviveu à geração mais nova e arrojada de cineastas. Podia ser um defeito, mas o velho Clint é bom o suficiente para saber utilizá-la em seu proveito e fazer disso uma ferramenta útil às histórias que quer contar.

"The Changeling" é uma história simples, até, mas que nas mãos de Eastwood assume proporções quase épicas. E com surpresas pelo meio. Quando pensamos que tudo se está a encaminhar para o fim, e sem uma resolução evidente, o realizador dá-nos um empurrão e vemo-nos novamente num turbilhão de acontecimentos e acontecimentos daqueles de que não estavamos nada à espera. O filme renasce e apresenta-nos mais 40 minutos de história, segredos, algumas revelações ao mesmo tempo que muda radicalmente de tom. Brilhante.

Para além disso, e como já está mais do que provado, Clint Eastwood sabe filmar terrivelmente bem as suas personagens, os seus cenários e as cenas de tensão. Neste filme, precisamente, as sequências mais tensas e incómodas são o seu grande trunfo, e a experiência do mestre consegue retirá-las da lamechice em que facimente poderiam cair. O filme é um trabalho negro, pesado, duro e doloroso para o estômago mais desprotegido. Uma dessas sequências, o momento em que a polícia comunica à personagem desempenhada por Angelina Jolie ter finalmente encontrado o seu filho, é de pura antologia. Filmada com uma calma que quase irrita, matemáticamente, com pequenos e sucessivos planos, quase como se fosse um jogo de ping-pong. Uma cena em que Angelina Jolie tem provavelmente os melhores segundos da sua carreira, e que só por si, provavelmente, serviam para conquistar o Oscar, e que nos aleijam sem piedade.

E a história (verídica) é mesmo esta: uma mulher chega a casa para descobrir que o seu filho de 9 anos desapareceu. Fuga, rapto, assassinato, são as hipóteses que tanto ela como nós temos na cabeça durante todo o filme, e essa incerteza é refinadamente gerida pela mão de Eastwood, que nunca nos dá certezas, mas que também não nos tenta enganar com falsas pistas. É, nesse sentido, uma obra dolorosamente honesta.

Já o disse, mas nunca é demais: Angelina Jolie tem aqui indiscutivelmente o seu melhor papel de sempre. Um papel que poderia também ser uma pieguice insuportável e pegajosa, mas a que ela empresta um realismo (também dolorosamente) honesto. É fácil acreditar naquele tipo de dor, e esse é provavelmente o melhor que se pode dizer do trabalho de um actor; que é um trabalho realista, sincero e desprovido de artefactos, e que quase nos faz esquecer da pessoa por trás da personagem. Um dos melhores filmes do ano, sem dúvida alguma.










Quanto a "Gran Torino" começo já pelo final: é para já o melhor filme do ano - a ver se o que está para vir o destrona - uma das maiores injustiças de sempre por parte da Academia, e o melhor filme de Clint Eastwood desde "The Bridges of Madison County" - na minha opinião, claro.

Tudo em "Gran Torino" é demasiado bom para ser verdade. A simplicidade, a história, a leveza e, acima de tudo o mais, a melhor interpretação de Eastwood em décadas, e que merecia o Oscar, perdõem-me a sinceridade e perdoe-me Sean Penn. Se é verdade que este foi o derradeiro papel de Clint Eastwood no grande ecrã, então a despedida foi em grande e uma espécie de homenagem às suas personagens mais reconhecidas. O Walt Kowalski de "Gran Torino" é um durão daqueles como já há muito não se via no cinema - provavelmente desde o sargento Thomas Highway de "Heartbreak Ridge". Veterano da guerra na Coreia, irascível, preconceituoso, detestável, inconveniente e terrivelmente sincero e directo, mal-criado, insuportável e, no entanto, perfeitamente adorável. A empatia que sentimos com um ser tão odioso é incrível e perfeitamente justificada, como viremos a perceber à medida que o filme se desenrola. Tenho ouvido e lido nos meios de comunicação que Walt Kowalski é um racista da pior espécie e penso que os responsáveis por estas afirmações não se deram ao trabalho de ver o filme. Walt não é racista. Walt é uma pessoa que vive num mundo de que não gosta, rodeado por pessoas que odeia e em quem absolutamente não confia. Os seus filhos, noras e netos são tratados com o mesmo (ou pior) desprezo que os seus vizinhos asiáticos e os seus melhores amigos são uma cadela e um barbeiro com quem troca os piores insultos - a primeira conversa entre os dois que testemunhamos é absolutamente deliciosa, diga-se.

O desenrolar do filme mostra-nos a subtil transformação de Walt Kowalski, motivada pela necessidade de defender o seu relvado de um gangue, e em consequência disso, a vida de um dos seus vizinhos, um adolescente que, ao contrário do seu primo mais velho, não faz questão de fazer parte do tal gangue. Aos poucos Walt derrete, enquadra-se, reajusta-se e volta a sentir prazer em estar com pessoas, e essa transformação é uma delícia para os olhos de quem gosta de ver um grande actor a trabalhar. Clint Eastwood sempre foi limitado e nunca o escondeu, mas este papel e a forma como ele o trabalha, despretensiosamente, suavemente e quase sem nos darmos conta de que é de facto um papel, fica para a história recente do cinema.

Num filme que merecia pelo menos as nomeações para melhor fime do ano, melhor realizador, melhor argumento adaptado, melhor actor e melhor canção original - também da autoria de Eastwood - vale a pena dedicar algumas linhas ao seu final. Clint Eastwood passa o filme todo a dar piscadelas de olho a outras obras suas e que lhe deram a fama que se conhece. Nesse sentido "Gran Torino" é um western clássico e que respeita todas as regras do género. Uma pequena vila (um bairro nos subúrbios), um justiceiro solitário (um velho rabugento), um cavalo fiel (um Ford Gran Torino de 1972) e um grupo de bandidos que atormentam a população (o gangue). E depois as poses de cowboy mau como as cobras, os planos, o movimento da câmara e as cenas filmadas como se de um western realmente se tratasse. O final, o tal final de que toda a gente fala, não é mais do que um duelo, não ao pôr-do-sol, mas na madrugada, no escuro, brilhantemente filmado (mais uma vez) e que no fundo é a melhor despedida que Clint Eastwood podia fazer enquanto actor e, neste filme em particular, de uma súmula de personagens que serviram para criar Walt Kowalski.

"Gran Torino" é uma daquelas obras-primas que para a maioria do público vai dizer muito pouco. Voltamos à história das pessoas que querem a arte e a cultura dadas em colher e já previamente mastigadas. É preciso ver para lá da primeira camada de "Gran Torino", e perceber toda um conjunto de sinais, códigos e regras que fazem parte da ancestral história do cinema e que Clint Eastwood domina como ninguém.

"Gran Torino" é melhor do que "Million Dolar Baby", o filme que deu a Eastwood uma série de galardões da Academia. É delicioso, cómico, dramático e a sério, muito a sério.
É o melhor filme do ano. Simplesmente.

Perdõem-me o trailer legendado em brasileiro, mas...