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Bom Karma... ou não!

quinta-feira, abril 07, 2016

«LARGA A ARMA OU EU LEIO»



Aqui há mais ou menos dez anos, aconteceu-me uma coisa daquelas que, mesmo sem darmos conta, passam a ser as histórias que mais vezes contamos e vamos contar até ao fim, repetindo-a até as pessoas se chatearem de nós.

E portanto, há coisa de mais ou menos dez anos, estava eu e o Marco no clube de comédia dele, e que nos servia a todos de segunda casa, quando entra o Carlos, esbaforido e com ar de puto que tinha acabado de encontrar a revista indecente do irmão mais velho, sorriso bem maior que a boca e os olhos a saltarem-lhe para fora dos óculos. Trazia uma pequena malinha metálica, ao estilo do espião que veio sabe-se lá de onde, e que acompanhou com um «sabem o que é que eu tenho aqui?» Aquelas perguntas a que claramente ninguém sabe dar resposta, pois se o invólucro da surpresa está fechado e bem opaco…

Abriu a malinha metálica e lá dentro vinha uma réplica perfeita de uma arma automática, cromada, pesada, bem mais real do que o nosso conforto aguentava. E diz o Carlos «temos de fazer alguma coisa com isto.» Não se referia, o Carlos, a algo de ilícito ou violento, claro. Na altura tínhamos um grupo de comédia que se dividia entre o stand up comedy e sketches feitos ali mesmo ao vivo. Era isso que ele queria fazer e para levar a palco nessa mesma noite. Passados uns bons quinze minutos tínhamos a coisa delineada e mais ou menos (nada, na verdade) ensaiada. E que era o seguinte:

Eu subia ao palco como que para anunciar os comediantes de serviço dessa noite mas antes anunciava que naquele palco também havia lugar à cultura e que, sendo assim, ia ler alguns poemas cuidadosamente selecionados. Abria o livro e no preciso momento em que ia começar a ler, o Marco, tipo alto e bem largo de ombros, irrompia por entre as mesas e cadeiras de arma em punho e dizia, «larga o livro ou eu disparo!» Confusão, barulho e tal, as pessoas a perceberem claramente a brincadeira e tal, eu muito confuso no palco a dizer que era só um livro, ambiente bastante agressivo e coiso e tal e quando o Marco subia ao palco para me tratar mal e me enfiar uns bem afinados pontapés nos costados – já depois de ter disparado a arma e assustado toda a gente que estava na sala, inclusive os funcionários que já sabiam que a coisa era a brincar – saltava o Carlos do público, de livro em punho, para gritar «larga a arma ou eu leio!».

Repetia-se o ciclo da confusão e do barulho, o Carlos ainda agarrava numa cliente (nunca num cliente, no entanto…) e ameaçava que se a arma não fosse lançada para longe lhe leria umas passagens dum livro. Como sempre, e porque nunca preparávamos a cena até ao fim, improvisávamos um final assim meio cuspido e pronto, o público adorava e ria muito e pedia mais uns copos. Noite feita.

Serve isto para quê? Desde logo para contar a história pela enésima vez e para dizer que os livros sempre foram uma arma – acho até que demos ao sketch o nome de A Palavra é uma Arma. E como arma que sempre foram, sempre foram perigosos por poderem cair nas mãos erradas e serem mal interpretados e mal utilizados. Há uma corrente política, por exemplo, que pegou num livro de um conhecido filósofo alemão e o mundo nunca mais foi o mesmo, mais para mal do que para bem.
E portanto, os livros são armas poderosas e que, bem utilizadas, podem fazer uma montanha de diferença nas vidas das pessoas. Levar alguém à cadeia é que já parece um tudo ou nada exagerado. Ser castigado por escrever, ler ou por difundir livros, sejam quais forem os livros, é coisa da idade média e já não acontece num mundo do século XXI. E no entanto, e no espaço de mais ou menos um mês, o Irão aumenta a recompensa pela morte de Salman Rushdie, ainda por causa do malfadado livro que o cavalheiro escreveu há coisa de umas décadas, e em Angola condenaram-se uns rapazes porque andavam a ler um livro nada simpático para o regime déspota de um certo José Eduardo.

Não é por acaso. Os déspotas têm fama de serem retrógrados e muito agarrados ao dinheiro e ao passado. Por isso mesmo, alguns conseguem o apoio – ou o silêncio que apoia – desse tal movimento político que nasceu de uma interpretação conveniente do tal livro do tal fulano alemão que filosofava umas coisas mais ou menos políticas e que é um movimento ainda muito agarrado ao passado, assim um tudo ou nada, antiquado, a saber a azedo.

Ou seja, os livros continuam a ser uma arma, o que é bom, mas continuam a ser uma arma de duas lâminas, que serve uns e outros, o que é o que tem de ser, mas que nem sempre é porreiro.

E portanto, as coisas são como são. Pelo menos já não se queimam livros a torto e a direito. Ou melhor…