«LARGA A ARMA OU EU LEIO»
Aqui há mais ou menos dez anos, aconteceu-me uma coisa
daquelas que, mesmo sem darmos conta, passam a ser as histórias que mais vezes
contamos e vamos contar até ao fim, repetindo-a até as pessoas se chatearem de
nós.
E portanto, há coisa de mais ou menos dez anos, estava eu e
o Marco no clube de comédia dele, e que nos servia a todos de segunda casa,
quando entra o Carlos, esbaforido e com ar de puto que tinha acabado de
encontrar a revista indecente do irmão mais velho, sorriso bem maior que a boca
e os olhos a saltarem-lhe para fora dos óculos. Trazia uma pequena malinha
metálica, ao estilo do espião que veio sabe-se lá de onde, e que acompanhou com
um «sabem o que é que eu tenho aqui?» Aquelas perguntas a que claramente
ninguém sabe dar resposta, pois se o invólucro da surpresa está fechado e bem
opaco…
Abriu a malinha metálica e lá dentro vinha uma réplica perfeita de uma arma
automática, cromada, pesada, bem mais real do que o nosso conforto aguentava. E
diz o Carlos «temos de fazer alguma coisa com isto.» Não se referia, o Carlos,
a algo de ilícito ou violento, claro. Na altura tínhamos um grupo de comédia
que se dividia entre o stand up comedy e sketches feitos ali mesmo ao vivo. Era
isso que ele queria fazer e para levar a palco nessa mesma noite. Passados uns
bons quinze minutos tínhamos a coisa delineada e mais ou menos (nada, na
verdade) ensaiada. E que era o seguinte:
Eu subia ao palco como que para anunciar os comediantes de
serviço dessa noite mas antes anunciava que naquele palco também havia lugar à
cultura e que, sendo assim, ia ler alguns poemas cuidadosamente selecionados.
Abria o livro e no preciso momento em que ia começar a ler, o Marco, tipo alto
e bem largo de ombros, irrompia por entre as mesas e cadeiras de arma em punho e
dizia, «larga o livro ou eu disparo!» Confusão, barulho e tal, as pessoas a
perceberem claramente a brincadeira e tal, eu muito confuso no palco a dizer
que era só um livro, ambiente bastante agressivo e coiso e tal e quando o Marco
subia ao palco para me tratar mal e me enfiar uns bem afinados pontapés nos
costados – já depois de ter disparado a arma e assustado toda a gente que estava
na sala, inclusive os funcionários que já sabiam que a coisa era a brincar – saltava
o Carlos do público, de livro em punho, para gritar «larga a arma ou eu leio!».
Repetia-se o ciclo da confusão e do barulho, o Carlos ainda agarrava
numa cliente (nunca num cliente, no entanto…) e ameaçava que se a arma não
fosse lançada para longe lhe leria umas passagens dum livro. Como sempre, e
porque nunca preparávamos a cena até ao fim, improvisávamos um final assim meio
cuspido e pronto, o público adorava e ria muito e pedia mais uns copos. Noite
feita.
Serve isto para quê? Desde logo para contar a história pela
enésima vez e para dizer que os livros sempre foram uma arma – acho até que
demos ao sketch o nome de A Palavra é uma Arma. E como arma que sempre foram,
sempre foram perigosos por poderem cair nas mãos erradas e serem mal
interpretados e mal utilizados. Há uma corrente política, por exemplo, que
pegou num livro de um conhecido filósofo alemão e o mundo nunca mais foi o
mesmo, mais para mal do que para bem.
E portanto, os livros são armas poderosas e que, bem
utilizadas, podem fazer uma montanha de diferença nas vidas das pessoas. Levar
alguém à cadeia é que já parece um tudo ou nada exagerado. Ser castigado por
escrever, ler ou por difundir livros, sejam quais forem os livros, é coisa da
idade média e já não acontece num mundo do século XXI. E no entanto, e no
espaço de mais ou menos um mês, o Irão aumenta a recompensa pela morte de
Salman Rushdie, ainda por causa do malfadado livro que o cavalheiro escreveu há
coisa de umas décadas, e em Angola condenaram-se uns rapazes porque andavam a
ler um livro nada simpático para o regime déspota de um certo José Eduardo.
Não é por acaso. Os déspotas têm fama de serem retrógrados e
muito agarrados ao dinheiro e ao passado. Por isso mesmo, alguns conseguem o
apoio – ou o silêncio que apoia – desse tal movimento político que nasceu de
uma interpretação conveniente do tal livro do tal fulano alemão que filosofava
umas coisas mais ou menos políticas e que é um movimento ainda muito agarrado
ao passado, assim um tudo ou nada, antiquado, a saber a azedo.
Ou seja, os livros continuam a ser uma arma, o que é bom, mas continuam a ser
uma arma de duas lâminas, que serve uns e outros, o que é o que tem de ser, mas
que nem sempre é porreiro.
E portanto, as coisas são como são. Pelo menos já não se
queimam livros a torto e a direito. Ou melhor…
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