kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

sexta-feira, agosto 26, 2011

O FADO PLASTIFICADO



Acerca de uma conversa, há poucos dias, e de como as coisas são abordadas sem o devido cuidado - ou seja, post arrogante e potencialmente arrogante à vista.


Quer-me parecer que a palavra blues, denominação mais do que conhecida para um dos mais antigos e influentes géneros musicais dos Estados Unidos da América, é habitualmente tratada de forma leviana e sem se perceber completamente o seu significado. É natural, de certa forma; as palavras, às vezes, assumem a forma de som e/ou rótulo, e acabam a perder a razão pela qual foram escolhidas. E os blues, são muita coisa, mas começaram por ser canções doridas do trabalho dos escravos negros do sul americano, para passarem a ser melodias e palavras dolorosas de amores perdidos e mal tratados, e que falavam das difíceis condições de vida dos negros, e de histórias de crimes (de paixão, muitas vezes) e da vida nas prisões. Ou seja, não há aqui palavras de alegria, felicidade ou bem-estar. E por isso se chamam blues.

oh, tell me, baby
What's the, matter with you?
Why don't ya hear me cryin'?


Os pais dos blues como os conhecemos hoje, eram homens e mulheres sem educação, musical ou de qualquer outra espécie, que quase não sabiam ler, que aprendiam sozinhos a tocar guitarra, piano ou harmónica e que definitivamente não tinham vozes limpas, cristalinas e, muitas vezes, sequer afinadas. Mas cantavam com a alma. A alma, essencial a quem quer cantar sobre as dores de se ser humano.

This bad love she got, makes me laugh and cry.
Makes me really know, that I'm too young to die.
If you hear me howlin', calling on my darling.


Isto a propósito deste novo fado que a todos encanta e que abre fronteiras e leva o nome de Portugal lá fora e todas essas patacoadas turísticas que não interessam nem ao menino Jesus. Um fado cantado por vozes poderosas e cristalinas, que dizem todas as letrinhas de todas as palavras, vozes bonitas, sem dúvida, mas que me fazem olhar de esguelha para quem as canta. E sim senhor, belas vozes as destes recentes nomes do fado, nada contra, muito bem, keep up the good work, palminhas.

No entanto, toda a gente sabe - ou devia saber - que o fado não nasceu no Coliseu dos Recreios, no Pavilhão Atlântico ou em nenhuma das gigantescas salas de espectáculo espalhadas por esse mundo fora. Toda a gente sabe - ou devia saber - que o fado nasceu no mais baixo e reles da sociedade portuguesa, e que os seus pais, eram homens e mulheres sem educação, musical ou de qualquer outra espécie, e que não tinham, definitivamente não tinham, estas belas e treinadas vozes de hoje em dia. Mas que lá cantavam com a alma, cantavam. E sinto falta desses fadistas de beco e esquina, que mesmo desafinados, mesmo sem se perceber metade do que dizem, muito menos do que cantam, conseguiam emocionar quem os ouvia.

O fado tornou-se limpo, higiénico, asséptico, classe média-alta, burguês, turístico. Podia ser vendido às fatias nas lojas onde se compram os galos de Barcelos, camisolas do Ronaldo e vinho do Porto a dez euros a garrafa. É um fado de plástico, um fado em pó, destinado a ser misturado com tudo o que vem à mão, mixado, modernizado - dizem eles - adaptado aos novos tempos e aos novos públicos. E os novos públicos nem percebem que este epíteto é, na verdade, um insulto da pior espécie. «Novos públicos» significa um público que começou só agora a ouvir uma coisa que sempre existiu, sem saber nada do género ou das suas origens e que, provavelmente, quando confrontado com uma gravação do Marceneiro, por exemplo, ficará espantado, admirado e chocado.

O blues, esse, também já foi muito mal tratadinho, sem dúvida. No entanto, no país que o viu nascer a coisa é-lhe mais equilibrada. Os artistas que se deixaram influenciar pelos pais do género, esforçaram-se por não desrespeitar as suas regras, princípios e do's and dont's. Artistas como Johnny Cash, Tom Waits e, mais recentemente, como Jack White, e isto só para citar os mais mediáticos. Pouco importa a qualidade da voz dos intérpretes. O que importa é que souberam preservar uma herança riquíssima e com um peso emocional que, a perder-se, transformaria os blues em outra coisa qualquer. Mas nunca em blues.

Este fado, o novo fado, neo-fado, sub-fado, pseudo-fado, é falso de reais emoções. É fado para inglês ver. Não chega a ser faduncho.

My baby caught the train, left me all alone
My baby caught the train, left me all alone
She knows I love her, she doin' me wrong







quinta-feira, agosto 25, 2011

EU ESTOU BEM


Alguém um dia me disse "palavras tuas, Nuno, usa palavras tuas" e eu, que já passei a fase da pretensão a escritor, respondi "também são minhas, estas palavras". Porque a minha escrita é jornalística, sempre encontrei nas palavras e imagens dos outros as coisas que também me pertencem. Porque falamos todos dos mesmos assuntos, acredito eu.

E esta música, já tantas vezes o reflexo dos meus dias, em fases tão distintas da minha vida, banda sonora de tantos momentos mais ou menos significativos, que me assombra, me conforta ou alegra, ou que me faz cair na realidade das coisas mais ou menos más, é um desses exemplos. Um exemplo de como as palavras de alguém podem fazer tanto sentido na vida dos outros. Como se fossem escritas a pensar em nós.

E porque, neste caso, são coisas em que acredito as Coisas que o Manuel canta e que escreveu porque as viveu como eu as vivo vivi e espero viver mesmo as que custam e aleijam e nos deixam os joelhos arranhados das quedas de bicicleta e nos levam a correr para o colo da avó a choramingar como se fosse a pior coisa do mundo mesmo sabendo que não é verdadeiramente assim tão grave e que só o fazemos porque as mãos da avó são sempre as melhores mãos do mundo.

E eu hoje sinto a falta das mãos da minha avó, mãos tortas, engelhadas, nós dos dedos como nós a sério, daqueles de cordas grossas, e que me podiam receber daqui a umas horas, quando eu chegar a casa. Mas já não podem. Porque a única coisa de que precisava, e que não posso pedir a mais ninguém porque à minha avó eu nem precisava de choramingar, é simples e pouco exigente.

Leva qualquer eu a meu dia
Dá-me paz eu só quero estar bem

RECUPERAÇÕES DO BAÚ

Sou um tipo sossegado, nunca dei problemas à minha mãe que não se lembra sequer de me ter visto algum dia acordar mal disposto ou rabugento.
Uso sempre "se faz favor", "desculpe", "não se importa", "não faz mal" e "obrigado", nunca exijo, reclamo ou barafusto, embora não permita que me passem à frente na fila do supermercado.
Não gosto de má educação, mas sou irritável. E sou irritável mas nunca sou mal educado.
Aprecio mulheres bonitas e homens bonitos, mas acima de tudo interessam-me as suas feições, não me perguntem porquê, mas posso ir a um psicólogo em busca da resposta.
Não gosto de, nem confio nos psicólogos. Aliás nem percebo muito bem a sua utilidade e nunca lhes darei dinheiro a ganhar. Gosto da palavra psiquiatra, no entanto.
Adoro mamas, rabos, e de sexos mais ou menos rapados, pouco importa. Mas gosto ainda mais de pescoços, pés, mãos e umbigos. Acho o pénis uma parte bonita do corpo do homem (se for bonita) e odeio as mulheres que dizem que nojo quando a ele se referem.
Adoro estrias...
Adoro que me desapertem as calças - não há nada que me excite mais - menos quando estou desmaiado e precisam de me levar para cama, porque depois não me lembro de que o fizeram.
Masturbo-me sempre no chuveiro e sempre com a mão direita, e nunca entendi aquela anedota que diz que os caixas d'óculos estão sempre a puxar os óculos para cima quando o fazem. Nunca precisei de me masturbar com os óculos postos...
Bebo demasiada Coca-Cola, e menos leite do que costumava beber, adoro água, natural, nunca fresca, banhos quentes no Verão e frios no Inverno, embora não tenha coragem para o fazer realmente.
Acredito piamente que o Tarzan foi o primeiro super-herói gay da história da BD, embora adorasse as tardes de Domingo passadas a vê-lo na sua tanguinha ridícula, enquanto me empanturrava de salada de fruta com iogurte e flocos de Nestum de mel.
Adoro calçado, sou viciado em calçado, mas nada me dá mais prazer do que andar descalço.
Faço nudismo sempre que posso e acho que há poucas coisas tão libertadoras quanto nadar nu.
Choro convulsivamente sempre que ouço ópera.
Rio-me convulsivamente sempre que vejo seja o que for com o John Cleese.
E irrito-me até à cólera quando me falam nos valores da democracia como se isso fosse a salvação da humanidade.
Zango-me com touradas, caça à raposa e tiro aos pombos, mas divirto-me a ver as claques do futebol à pedrada e ao pontapé.
Nada me faz mais confusão do que ver um policia a fumar em serviço. Aliás, há poucas coisas que me fazem mais confusão do que um policia.
Adoro polvo, choco e lula, mas infelizmente gosto mais deles no prato.
Nunca mijo no tampo da sanita e lavo sempre a banheira quando acabo de tomar banho, mas acho desnecessário fazer a cama ou passar a roupa a ferro.
Ouço música alto mas não gosto que me gritem.
Gosto de ler mas prefiro escrever.
Vejo o programa da Oprah porque não há pessoa no mundo que me irrite mais e mais rapidamente.
Não vejo o da Martha Stewart porque ela tem um ar diabólico.
Gosto de decoração, moda e culinária, mas detesto jardinagem, cozer botões e fazer arroz.
Detesto ingleses, mas não há nada mais delicioso do que chá e biscoitos.
Gosto de soltar a imaginação e deixá-la sair naturalmente, mas fico tão frustrado quando me apercebo de que a imaginação acabou...

"O MARIDO DO MEU IRMÃO É MINHA CUNHADA..."

Confesso, estive uns bons minutos à frente de um ecrã em branco, sem saber muito bem o que escrever ou sequer como começar. Prende-se esta indefinição com o texto de José António Saraiva e que foi publicado no jornal Sol de 22 de Agosto, e que tanta tinta digital tem feito correr. O referido artigo de opinião (não se esqueçam disto) é um ataque cerrado aos homossexuais e uma defesa aberta aos bons costumes, herança dessa maravilhosa tradição cristã, o que por si só representa, à partida, que ao lê-lo, estaremos a entrar em terreno minado. Como a Lady Di, lembram-se?, essa diva da comunidade gay mundial.

Só hoje (agora mesmo, diga-se) tive a curiosidade de passar os olhos pelos texto do senhor Saraiva. E eu, que nem tenho problemas de compreensão, tive de o ler uma segunda vez - e palpita-me que ainda o vou ler mais vezes. Acontece que a incredulidade me faz perder, normalmente, cerca de 60% do meu QI, e algumas palavras, ideias e conceitos, por causa disso, passam-me completamente ao lado; tornam-se numa língua estranha, transformam-se em rabiscos de letra de médico e eu, repentinamente burro, deixo de perceber o que me estão a dizer.

A primeira leitura do texto do senhor Saraiva deixou-me com a desconfortável sensação de que aquilo poderia ser somente uma crónica humorística de má qualidade - como aquelas mal escritas pelo Ricardo Araújo Pereira e ainda pior redigidas pelo José Diogo Quintela, estão a ver? A segunda leitura, mais atenta, fez-me compreender duas coisas: que aquilo era, afinal a sério, e que o senhor Saraiva tem uns tomates de ferro. Porque assumir aquelas coisas, de uma forma tão despreocupada com a sua imagem pública e com a posição do jornal que dirige, é coisa para homem grande, zona púbica peluda e unha grande no mindinho para coçar o rabo à frente seja de quem for. O senhor Saraiva é um homem à séria, à moda antiga, como já não se fazem. E ainda bem, porque já pouca gente se orgulha dos antepassados do exemplar masculino de uma humanidade decadente, atrasada e retrógrada. O senhor Saraiva é artesanato de uma era que já o foi.

Posto tudo isto, analisemos o artigo de opinião (guardem isto, lembrem-se) bocadinho a bocadinho. Parece-me a única maneira justa de avaliar um texto que é a equivalência literária aos snuff movies - cada frase que se lê é pior, bem pior que a anterior, e deixa-nos com uma desagradável sensação de náusea por antecipação.

Deixemos, por isso, todas as convenções jornalísticas de que fala o Saraiva - de certeza que ele não se importará se eu retirar daqui o 'senhor' - e os factos ocorridos e que o levaram a escrever o que escreveu eque pode ser lido no site do referido semanário. Passemos directamente à primeira das reais barbaridades. Diz o Saraiva: «Mas os gays, que travaram uma luta tão grande, tão longa e tão dura para poderem casar-se, separam-se afinal com a mesma facilidade dos outros casais? Não seria normal que, pelo menos nos primeiros tempos de vigência da nova lei, procurassem ser exemplares, até para provarem aos opositores que as suas convicções eram fortes e sua luta era justa?».


E logo aqui temos escárnio, sarcasmo ressabiado e um autor mesquinho, capaz do pior para dar a sua opinião num artigo jornalístico. Porque, e apesar de ser um jornalista, director de um semanário que se quer sério e respeitado, o Saraiva parece esquecer-se do facto do artigo de opinião ser um estilo jornalístico. Dizer que os gays deviam ser exemplares para poderem provar que a sua luta tinha fundamento, é o Saraiva a gozar com estes direitos adquiridos; a rir-se à grande com o mal dos outros. E é feio, ó Saraiva.


Logo a seguir o Saraiva questiona-se sobre o sentido de «se separar ao fim de meia dúzia de meses», para, mais à frente, acrescentar «O casamento é entre um homem e uma mulher. (...) As palavras que usamos têm um significado que o tempo e o uso foram consolidando – e ‘casamento’ na nossa civilização quer dizer a união entre um homem e uma mulher, ou seja, o acto fundador de uma família. Querer que a palavra tenha outros significados é uma aberração que põe em causa as próprias referências do meio em que vivemos». O que o Saraiva parece desconhecer é que, em 2010, a média de divórcios em Portugal rondou os 72 por dia, sem qualquer especificidade relativa ao facto de serem casamentos hetero ou homossexuais. Um divórcio é um divórcio, e com certeza, não serão os gays os responsáveis, nem por esta média, nem pela credibilização de uma instituição a que o Saraiva devota tanto respeito e consideração. Nem os homossexuais nem qualquer outro cidadão. As coisas são como são, e é nessa normalidade que reside a maior ignorância do Saraiva: o direito ao casamento, independentemente das opções sexuais dos noivos - sim, Saraiva, mesmo que sejam noivo e noivo, ou noiva e noiva.


Mas o Saraiva, iluminado pela fé cristã que é, explica o acontecimento, a estranheza dos factos com uma brilhante teoria. Segundo ele «o ainda marido (ou mulher?) de Nuno de Sá é um massagista de nacionalidade venezuelana, de nome Carlos Eduardo Yanez Marcano, com menos 10 anos do que ele. Perante este bilhete de identidade, compreendem-se melhor as zangas, as agressões – e finalmente a lavagem de roupa suja na praça pública». Ok , e isto é o quê? Xenofobia, homofobia ou a total incompreensão de uma série de coisas que, imagine-se, acontecem na vida real onde, claramente o autor não habita. Sim, pessoas mais velhas casam com outras mais novas, os jovens não são sempre violentos e os massagistas não batem nos outros com as mãos oleadas. E claro, já cá faltava a tentativa, ofensiva e muito perigosa, de criar um paralelismo entre estes acontecimentos e o assassinato de Carlos Castro de maneira a consubstanciar a sua fraca, ténue e feia teoria. Mais uma vez, feio, ó Seabra.


Diz o Saraiva, logo a seguir que é «claro que dois homens podem viver juntos – sejam irmãos, amigos, companheiros ou sócios em qualquer coisa. Como duas mulheres podem viver juntas, por variadíssimas razões. E é justo que as pessoas que vivem juntas tenham certos direitos em comum. Mas, para isso, não é necessário pôr em causa as nossas referências nem baralhar os nossos pobres espíritos». Quanto a isto, só posso dizer que o espírito do Saraiva não é pobre, está na falência mais deprimente. Mas, não satisfeito, ainda atira um «nem – já agora– complicar a vida aos pobres jornalistas, pondo-os a pensar se estará certo dizer ‘o ex-marido de Jorge Nuno de Sá’». Meu caro, os únicos jornalistas baralhados com esta nomenclatura são os que partilham o mesmo cérebro do século XV que tens a boiar na tua caixa craniana.


A terminar, e quando se pensava que a coisa não podia ser mais ridícula, o autor diz «agora um casamento onde há dois maridos e nenhuma mulher é coisa muito estranha. Ainda mais estranha se acabar com uma queixa na esquadra". E só me apetece perguntar porquê. Porque, e mais uma vez, um casal é um casal, e os problemas entre casais são os mesmos e têm, infelizmente, as mesmas causas e as mesmas consequências.


Enfim, voltando ao início, apetece-me cada vez mais valorizar o enorme e rígido par de testículos do Saraiva. É realmente necessário conhecer a sua fé e as coisas em que se acredita para, num jornal de alguma relevância, e assumindo o papel de seu director, publicar um artigo de opinião (lembram-se?) desta natureza homofóbica, preconceituosa, perigosa, incendiária - o resultado está bem à vista - e, no limite, cómica. Ridiculamente cómica.


No entanto, esta iniciativa que circula no Facebook, e que tem como objectivo boicotar o semanário Sol, tem tanto de ridícula como de inútil. Desde logo porque o semanário Sol não entra sequer na lista dos dez jornais mais vendidos em Portugal, e a sua tiragem ultrapassa por pouco os 100 mil exemplares. Concordo, isso sim, que se deva ler o Sol, para poder criticar o que por lá se escreve, especialmente se forem ignorâncias do calibre da que escreveu o Saraiva.


Sou totalmente a favor da liberdade de expressão e, ainda mais, da liberdade de imprensa. O problema é que a liberdade imprensa tem destas coisas. Sendo um género jornalístico, o artigo de opinião (eu bem vos avisei) concede liberdade total ao seu autor de dizer o que bem lhe apetece. Mas este não é um autor qualquer. É o Saraiva. E a propósito do Saraiva, convém perceber uma coisa fundamental. Que, acima de tudo, ele não é um simples director do semanário Sol. É também o seu fundador e, logo, um dos seus accionistas. Explica muita coisa, não explica?

terça-feira, agosto 23, 2011

A REVOLUÇÃO APRESSADA

~




Eu sei, é complicado chamar revolução apressada a uma guerra civíl que leva já seis meses. A revolução, entenda-se, é este momento de aparente histeria em torno da possível, aparente, queda de Khadafi. De repente, o mundo voltou a acordar para os conflitos na Líbia e para a possibilidade do fim da ditadura do general que todos consideravam um monstro - mesmo que por várias razões não o admitissem. E os líderes mundiais dizem que o poder está nas mãos do povo, e a ONU diz que é preciso ter cuidado com a mudaça do paradigma político líbio e todo o mundo ocidental se rejubila e todo o mundo árabe - ou quase todo - assume com a certeza absoluta que é o fim de uma era.


E no entanto...


E no entanto estas coisas das ditaduras caídas, respeitam as mesmas regras dos policiais, em que um morto deixa de ser um simples desaparecido somente quando aparece o seu corpo. Ou seja, enquanto Khadafi não se render, pedir exílio ou for capturado, a sua ditadura permanece viva e ameaçadoramente presente.


No jornal Público de hoje, uma fotografia de um homem, vestido apenas com uns calções militares - que tanto podiam ser de um guerrilheiro como de um jovem skater - empunhando uma M-60 e a respectiva cinta de balas e montando guarda à escola militar feminina de Tripoli, exemplifica na perfeição a natureza deste conflito. Não há aqui nenhuma da law and order típicas do exército americano, sempre que este é chamado a «democratizar» um país. Aqui é quase como cada um por si e fé no profeta. E no entanto, esta era uma guerra com um desfecho previsto. A questão foi sempre o tempo que levaria até este exército de pés descalços conseguir derrubar um regime violento e que parecia nunca desiquilibrar-se o suficiente para cair do pedestal. E esse tempo, essa demora, fez-nos adormecer e esquecer o assunto. Foi mais ou menos nessa altura que os órgãos de comunicação deixaram de lhe dar honras de abertura ou primeira página, e são esses mesmo órgãos de comunicação, sempre sedentos de coisas desta natureza, que agora nos relembram da Líbia, de Tripoli e de Khadafi. E que nos servem, com a certeza mais absoluta, a queda do ditador e o renascimento de um novo país árabe.


E contudo...


Contudo, ninguém nos explica que estes novos países árabes não sabem ainda como recomeçar do zero. Que a Tunísia e o Egipto continuam atolados numa lama tremenda de confusões, sociais, burocráticas, hierárquicas, e para as quais não estavam, não podiam estar preparados - pese embora contassem com elas. E ninguém parece querer perceber que a Líbia, mais do que qualquer um dos seus vizinhos, recentes vizinhos?, é um caso ainda mais complexo e de difícil resolução. Porque tem ainda menos bases, e ainda menos sólidas, para a reconstrução social e política de que necessita.


A vontade de mudança, expressa a tiros de M-60, morteiros, lança-granadas, chinelos de meter o dedo e peitos destapados é louvável e, por estes dias, coisa de romances históricos. No entanto não chega. Infelizmente não chega. E é aqui que o ocidente pode e deve ajudar. Não na ajuda militar não autorizada - e que parece não ter sido determinante - nem no incendiar da vontade popular, nem no retirar de apoios hipócritas ao líder odiado. É aqui, que o ocidente deve intervir e, sem sobranceria, ensinar um povo que não sabe o que é democracia ou liberdade de opinião, a reorganizar-se e a construir um novo conceito de sociedade. E isto tudo sem perder a sua identidade árabe, sem ocidentalizações deprimentes e, acima de tudo, sem pressa.

terça-feira, agosto 16, 2011

MARWENCOL - OBRIGATÓRIO!!!



Marwencol é um documentário. Como objecto cinematográfico não é das melhores coisas que já vi, longe disso. O tema que aborda, no entanto, é absolutamente irresistível e uma daquelas descobertas que podem revolucionar os nossos conceitos.

Mark Hogencamp é um americano de meia idade que esteve em coma e perdeu grande parte das suas memórias devido a um brutal espancamento. E pronto. A partir daí - e é este o ponto de partida do documentário - e porque tinha perdido tudo, Mark dedicou-se a criar um mundo alternativo onde pode ser quem quiser e onde é feliz e aceite.

E até aqui nada de especial, certo? A questão é que o mundo criado por Mark Hogencamp, é composto por GI Joes e Barbies, e está situado algures nos anos da Segunda Guerra Mundial. Algures porque as referências do artista cruzam-se de forma caótica e sem aparente lógica. Temos bruxas, soldados americanos, nazis amigos e nazis inimigos, os da SS, claro, e máquinas do tempo, tudo a servir uma história que é muito mais do que uma simples brincadeira de crianças.

Mark vive realmente naquele mundo de plástico e madeira; ama e é amado, é um herói destemido e líder admirado. É quem ele quiser ser, sem críticas ou olhares de esguelha. É feliz, pela primeira vez na vida.

O documentário é um objecto quase amador, de montagem duvidosa e sem uma ordem ou hierarquia assumidas. Contudo, é um filme feito com o coração, que respeita e admira Mark Hogencamp e que o mostra ao mundo sem cerimónias ou complacências. Mostra-o e mostra a sua arte, impressionante, belíssima, de um realismo arrepiante e que só faz total sentido quando sabemos o que está verdadeiramente por trás daquelas composições e fotografias.