A DINAMARCA ESTÁ PODRE
Eu não tenho uma solução para o problema dos milhares de
refugiados que todos os dias chegam à Europa. Ou melhor, tenho, mas é uma
solução que implicava descer várias camadas de níveis históricos, sociais,
políticos e cronológicos; uma espécie de viagem no tempo ao tempo em que tudo
começou a sair da linha, a ficar enviesado e a retorcer-se para o que é hoje
uma realidade (aparentemente) inelutável.
Da mesma forma, não sei se a Dinamarca é um país racista.
Dizer que sim seria fácil, à luz dos últimos acontecimentos e das decisões
políticas assumidas pelo seu governo. Seria fácil e seria igualmente a
simplificação de uma questão que não se pode, penso eu, resumir a motivos de
preconceito estúpido. Há algo mais do que apenas racismo nestas tomadas de
posição da Dinamarca e de outros países europeus.
Há racismo, pois claro, mas há também uma arrogância de
países ricos que perante os pobres o que querem mais é não serem chateados. Como
aquele milionário que sai do restaurante cinco estrelas Michelin e se afasta do
pedinte que não come há uns dias e que ainda é capaz de vociferar um qualquer
insulto ou piadola aviltante. É disto que se fala quando se fala da velha
Europa: um conjunto de ricaços, no seu clube de cavalheiros, bem acomodados,
bem comidos e melhor bebidos que escarnicam dos que lá fora não têm sequer um
caixote para se sentar. A Europa, a velha e orgulhosa e babona Europa, é um
burguês eternamente enjoado, permanentemente enfadado com as vidas dos outros.
E pelo meio há racismo. E pelo meio há xenofobia. Que não
são mais do que as armas escondidas que garantem que a boa vida dos europeus
não é ameaçada pela pobreza e miséria e desgraça dos outros. Pobreza e miséria
e desgraça que na origem – a tal origem a que era preciso recuar para se tentar
resolver o problema – teve o dedo sujo da Europa.
Há uns meses demo-nos conta de que os nossos amigos,
familiares e conhecidos eram racistas e xenófobos. Subitamente, a maior rede
social do mundo era a malha que une duas traineiras e em que todo o tipo de
peixe podre vinha cair. E ficámos chocados. Chocaram-nos as palavras de quem,
jurávamos, não seria nunca capaz de tanto ódio, de tanta frieza e
insensibilidade. De quem desejava ainda mais desgraça àqueles desgraçados que
davam à costa meio mortos, todos mortos, cada vez mais mortos, ainda bem que
mortos, que nós vivos já cá temos que chegue. Abriram-nos a boca de espanto à
custa de porrada da feia, à custa da desilusão e da vergonha de conhecermos
pessoas capazes de tão asqueroso comportamento.
E, como sempre nestas coisas, o indivíduo tornou-se horda e
a horda tornou-se nação e a nação vai bem lançada para se tornar um continente
inteiro. A Europa vaidosa de si própria, orgulhosa da sua humanidade, sucumbiu
à mentira da benevolência, da defesa dos direitos humanos, do anfitrião que
sabe receber e mostrou a sua verdadeira cara feia de burguês que nasceu com um
pedacinho de cocó debaixo da ponta do nariz.
E portanto temos a Dinamarca a fazer a vez dos nazis e dos russos
de há 80 anos; a ficar com os pertences de quem lhe pede ajuda, a recusar a
reunião de familiares separados na freima da fuga ao horror. E temos cercas e
arame farpado e cães e soldados; somos uma quinta de luxo, um resort for
members only, protegido pelo que de mais avançado há em matéria de segurança
contra assaltos. Só que não estamos a ser assaltados e as nossas tácticas de
defesa não são avançadas: são uma simples réplica do pior que a humanidade já
teve e foi tendo, escondido dos olhos mais atentos por campanhas de marketing e
de frases bonitas para t-shirts, never again, never forget…
E tenho vergonha de ser europeu a passos largos para ter
vergonha de ser humano.
«Os turcos! Os turcos!»
«Quero que se fodam!»
escreveu Howard Barker na peça Os Europeus em 1987. E nada
mudou, entretanto. E esta repetição de ciclos que se repetem dentro de si
mesmos cria uma inevitabilidade de repetição que me faz acreditar cada vez mais
que nada disto algum dia terá solução.
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