SESSÃO DUPLA (CASEIRA)
As maravilhas da pirataria permitem coisas destas, ver dois filmes seguidinhos e sem qualquer despesa de maior.
As últimas duas noites foram passadas a ver dois filmes que tanto deram que falar e que, por razões tão diferentes, são dois dos filmes mais importantes do ano.
Foi o próprio Danny Boyle quem assmiu que filmar na Índia era fácil; para onde quer que apontasse a câmara estava um plano magnífico. O único problema de "Slumdog Millionaire" é esse mesmo: o excesso de informação desnecessária ao próprio filme e a desmedida quantidade de plasticidade artística que Boyle obviamente não soube gerir. Ou não soube ou não se conteve. Todo o filme, especialmente a sua primeira hora, é repleto de planos enviesados, cores saturadas até à exaustão (do espectador) e movimentos de câmara alucinados. Como se de repente o realizador descobrisse que era possível toda aquela panóplia de recursos e, como uma criança que descobre um brinquedo, os quisesse utilizar a todos ao mesmo tempo. Não era necessário. Precisamente por que na Ìndia qualquer plano que se filme é um mundo de informação. E que não se confundam as coisas: a intenção do realizador não foi aproximar o seu objecto ao universo histriónico de Bollywood, exagerado, berrante e positivamente, intencionalmente piroso. O exagero de Boyle chira a pretensiosismo da pior espécie e acaba por quase estragar o que é, no fundo, uma belíssima história de amor.
Para além disso, a primeira parte dessa mesma história, que serve basicamente para nos enquadrar na dura e repugnante vida dos miúdos dos bairros-de-lata de Bombaím, é excessiva também noutros detalhes, igualmente desnecessários. As imagens construídas por Danny Boyle das dificuldades e das situações porque passam os dois irmãos protagonistas - embora não tenha dúvidas que andem muito perto da realidade - são gratuitas e têm como único e desleal propósito agarrar o espectador e, mais uma vez, servir os devaneios plásticos do realizador/criador. Não faziam falta nenhuma a uma história tão forte, tão bem escrita e, acima de tudo e novamente, tão real. A empatia com os miúdos é fácil de se atingir, a compreensão do que é ser miúdo na Índia (naquela Índia) é imediata, e a história por si só é mais do que suficiente para garantir que o espectador não vai desistir de a acompanhar até ao fim - é, nesse aspecto, genial, a odisseia de Jamal e a forma como percebemos o porquê de saber todas as respostas do concurso "Who wants to be a millionaire" que está no centro de toda a acção. No entanto, tanto efeito psicadélico, tanto desgoverno estético fizeram-me pensar seriamente em ver o filme todo. Cansaram-me muito rapidamente.
A segunda metade de "Slumdog Millionaire" é bem mais consistente e dispersa muito menos. É aí que começamos a perceber a real dimensão do amor entre Latika e Jamal e nos prendemos definitivamente ao ecrã (do computador, neste caso). Porque como já disse é uma história de amor belíssima, porque os actores são incríveis e porque a realidade social é abordada de uma forma menos exploratória e mais sóbria. O filme fast food torna-se subitamente num filme sério. Torna-se interessante, desenvolve-se com segurança e cresce dentro de nós.
É importante referir mais uma vez e sempre o magnífico trabalho de todos os actores. As três idades retratadas são obviamente partilhadas por três gerações de actores e todos contribuem com uma nobreza e dignidade emocionantes e realmente inspiradoras. Como se fossem mesmo as suas vidas naquele ecrã - não serão? Acaba por ser esse o ponto mais forte do filme de Danny Boyle. Um filme que podia ser um grande filme e que só não o é por culpa do seu realizador. O homem perdeu-se na tecnicidade do desnecessário, do fútil, e ao fazê-lo arrastou uma boa hora de película para um limbo de indefinição. A sensação que me acompanhou durante esses longuíssimos 60 minutos foi a de que estava a ver um teledisco, sem grande substância; um objecto meramente gráfico.
É um dos filmes mais importantes do ano, sem dúvida. Desde logo porque arrasou na cerimónia dos Oscar e porque foi, de uma forma mais ou menos consentânea, um sucesso de público. A meu ver, é importante porque, e apesar de todas as críticas menos positivas que lhe possa fazer, um objecto ímpar pela forma como foi construído e uma lição de como é possível fazer bom cinema - e ao mesmo tempo ter um monstruoso sucesso comercial - sem rostos familiares e com uma fórmula completamente nos antípodas do que se faz hoje em dia.
"Slumdog Millionaire" é um excelente filme, tenho de o admitir. Mas merecia ser «melhor» do que tantos outros na mesma corrida? Não acredito.
Excelente, sem dúvida, é "The Wrestler". E uma das razões reside precisamente na total ausência de truques, efeitos de maquilhagem tecnológica ou rasteiras ao espectador. Tudo aqui é dura e cruelmente real. Toda a informação é imediata, absorvida instantaneamente. Difícil de digerir porque nos é dada crua e custa a passar na garganta, mas verdadeira e terrivelmente honesta.
Darren Aronofsky aprendeu como voltar a fazer bons filmes depois do fracasso hi-tech que foi "The Fountain". Simplificou, regressou à terra e assinou um filme que é quase um documentário acerca das dores que todos sentimos. A dor de envelhecer e, mais do que isso, a dor de perceber que já não se consegue fazer aquilo que mais se ama. O filme é um constante nó na garganta e só quem aprendeu a sublimar as dores com que a vida tão atenciosamente nos presenteia, é que consegue passar por "The Wrestler" sem se emocionar à séria e sem se magoar.
Porque, para além de um excelente argumento, "The Wrestler" tem Mickey Rourke num dos melhores desempenhos de que tenho memória. É ele o responsável pela angústia que sentimos desde o primeiro minuto de filme, desde a primeira imagem, ou, se preferirem, desde o primeiro som. É ele, quase sozinho, o filme inteiro. Como se ambos não pudessem ser separados - e não são, de facto. De tal forma que se torna practicamente impossível destacar uma sequência, uma cena, um plano ou um diálogo do seu Randy «The Ram» Robinson para ilustrar o magnífico trabalho de um actor que é a sua personagem - mais do que a personagem ser o actor. Rourke tem a capacidade de nos comover sempre que fala, sempre que o vemos a andar naquela forma atabalhoada e ao mesmo tempo orgulhosa de uma estrela em clara decadência. Sempre que nos embaraça com a infantilidade de alguém que claramente está desadequado do resto do mundo, do resto das pessoas, e que só se sente bem no universo onde era grande, onde era importante e, mais do que isso, onde era reconhecido. Randy «The Ram» acaba por não ser mais do que um miúdo que nunca cresceu, que não sabe como o fazer e que só quer fazer parte de alguma coisa. E é terrível, essa realidade. E só Mickey Rourke podia fazê-lo desta forma. Não tanto porque passou pelo mesmo, ou por uma série de acontecimentos menos agradáveis da sua vida - alguns mitos urbanos, outros bem reais - e que o afastaram definitivamente de um mundo onde era grande, importante e reconhecido. A tragédia permanente nos olhos de Rourke, e que sempre lhe deram personagens atormentadas e desenquadradas da normalidade, voltou e em máxima força. É dessa tragédia que todos temos medo, e é por isso que "The Wrestler" nos toca tão fundo e com tanta força.
Obviamente há que referir o trabalho igualmente majestoso de Marisa Tomei. Quase abafada pelo «monstro» Rourke, a actriz eternamente passada para segundo plano, conquista o seu espaço num filme que é quase um one man show. Começa timidamente, numa altura em que temos mesmo de estar atentos à movimentação (literalmente) de Randy, e acaba o filme numa explosão de energia absolutamente contangiante. Merecia, como sempre aconteceu, ser reconhecida pelo seu trabalho imaculado.
"The Wrestler" é dos mais importantes e melhores filmes do ano e exactamente pelas mesmas razões de "Gran Torino": a simplicidade, a humildade e a leveza. Não é um filme para corações fracos (também literalmente), especialmente para aqueles que aprenderam a disfarçar as suas dores e a procurar formas de lhes fugir. É o completo oposto de "Slumdog Millionaire". Retrata uma realidade terrível, verdadeira, humana, mas sem recorrer a truques de câmara, habilidades de fotografia ou efeitos especiais. É o ser humano despojado de artifícios e dolorosamente credível e a quem, com frequência, viramos a cara na rua.
A acompanhar, a excelente música que Bruce Springsteen escreveu para "The Wrestler", e que é o filme, do início ao fim.
Have you ever seen a one trick pony in the field so happy and free?
If you've ever seen a one trick pony then you've seen me
Have you ever seen a one-legged dog making its way down the street?
If you've ever seen a one-legged dog then you've seen me
Then you've seen me, I come and stand at every door
Then you've seen me, I always leave with less than I had before
Then you've seen me, bet I can make you smile when the blood, it hits the floor
Tell me, friend, can you ask for anything more?
Tell me can you ask for anything more?
Have you ever seen a scarecrow filled with nothing but dust and wheat?
If you've ever seen that scarecrow then you've seen me
Have you ever seen a one-armed man punching at nothing but the breeze?
If you've ever seen a one-armed man then you've seen me
Then you've seen me, I come and stand at every door
Then you've seen me, I always leave with less than I had before
Then you've seen me, bet I can make you smile when the blood, it hits the floor
Tell me, friend, can you ask for anything more?
Tell me can you ask for anything more?
These things that have comforted me, I drive away
This place that is my home I cannot stay
My only faith's in the broken bones and bruises I display
Have you ever seen a one-legged man trying to dance his way free?
If you've ever seen a one-legged man then you've seen me
Etiquetas: Filmes Vistos
1 Comments:
At 23:12, pinkpoetrysoul said…
Este comentário foi removido pelo autor.
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