AS PUTAS E OS DOUTORES
Esta crónica não é sobre
futebol.
Tinha 17 anos quando
sofri o meu primeiro desgosto de amor pelo jornalismo. Aconteceu no meu
primeiro dia de trabalho no jornal O Jogo depois de vir da minha primeira
entrevista e quando me sentei para a passar para o computador e me dei conta de
que a redação – um comprido e estreito rectângulo – se dividia em dois grupos
bem distintos: na primeira metade os jornalistas de futebol, na segunda e mais
pequena metade, os de todas as outras modalidades, as «amadoras», onde eu
estava a escrever tudo o que sabia sobre o Michael Jordan, o Clyde Drexler e o
Dominique wilkins. Mais do que paternalismo, era a velha história dos filhos da
mãe e dos filhos da puta. O jornalismo, aprendi nesse dia, está cheio de ambos.
O jornalismo partiu-me o coração uma segunda vez e não muito tempo depois da
primeira – só tinha 17 anos, é a idade ideal para partirmos o coração em
catadupa – quando o Pinto da Costa e o Valentim Loureiro entraram pela primeira
vez (para mim) na redação, acompanhados por um séquito que, só mais tarde viria
a saber, era habitualmente constituído por árbitros e empresários das mais
diversas áreas, para levarem uns quantos jornalistas de futebol a almoçar. Não
muito longe dali existia um bar de putas onde, imagino eu, os mesmos
intervenientes comiam a fruta que já deu tanto que falar.
Mais ou menos vinte anos mais tarde, tive a certeza absoluta de algo que já há
muito me vinha atormentando o coração jornalista. Foi durante o curso de
jornalismo que deixei de ter dúvidas de que os jornalistas não são hoje mais do
que secretárias do senhor doutor; uma espécie de profissional altamente
qualificado para escrever uma alarvidade de palavras por minuto que lhe são
ditadas pelas agências de comunicação, assessores de imprensa e, acreditem ou
não, boatos ou quase boatos que circulam pela world wide web. São – ou
continuam a ser – ao mesmo tempo, as putas de todos os outros doutores. Deitam-se
com eles, jantam e bebem copos com eles, planeiam com eles e partilham
interesses com eles. Obedecem-lhes cegamente.
Mas esta também não é uma
crónica sobre jornalismo.
Sou sportinguista. Para espanto
de muitos amigos, que não entendem como isso é possível tendo eu vivido quase
toda a minha vida no Porto e que chegam a perguntar-me «de onde é que isso
veio?», sou sportinguista. Sou, quero acreditar, um sportinguista saudável: não
espumo de raiva perante os adversários, não bato na minha mulher quando a
equipa perde e quando a equipa perde, perde sozinha, que as minhas derrotas
estão muito longe do campo de futebol dos outros. Não sou sócio, não pago
quotas e não tenho um cachecol verde e branco. Se sou sportinguista, isso
significa que, como dizem os rivais, estou habituado a sofrer tantos anos sem
conquistas significativas. Mas na verdade não sofro. Vou desistindo, isso
talvez. Vivo vitória a vitória sem pensar no grande final, no money shot que é
a conquista de um campeonato ou de um título europeu. Percebo, por essa razão,
o que é ser adepto de um clube mais pequeno, daqueles que por muito bem que
joguem nunca terão como objectivo o campeonato nacional. E vivo bem com isso.
Como vivo muito bem com o
Benfica tricampeão. Parece-me evidente de que será o Benfica novamente campeão,
este ano. Mas a verdade é que o Sporting andou lá perto e já há muitos anos não
me convencia de que talvez fosse este ano, de que talvez fosse desta que o
Sporting voltava a sair à rua para festejar um título cada vez mais raro. E,
portanto, acompanhei o campeonato com mais atenção. Li mais jornais do dia
seguinte, vi mais debates televisivos feitos por adeptos que se espumam de
raiva, que se insultam e mentem e que são assumidamente e desavergonhadamente
tendenciosos e que mesmo perante uma fractura exposta conseguem dizer que nem
houve falta, muito menos penálti. Ao fazê-lo, dei-me conta, novamente, de que o
ecossistema onde vivem as putas e os doutores está mais vivo do que nunca e de
que tem mais poder que alguma vez teve. Penso eu que terá a ver com o facto de o
futebol movimentar hoje mais milhões do que algum dia movimentou. E isto já se
sabe, um ecossistema que produz muita comida é um ecossistema rico mas brutal,
onde só sobrevivem os que aprendem a viver nele. Os restantes, os velhos e os
doentes, esses ficam pelo caminho, tornam-se invisíveis, definham e morrem.
E portanto, esta não é
uma crónica sobre o Sporting ou sobre o Benfica.
Esta é uma crónica sobre
o poder que o Benfica tem nos media portugueses. É uma crónica sobre o exército
de bombistas-suicidas, de snipers, de grupos de operações especiais que o
Benfica conseguiu infiltrar nos órgãos de comunicação social. São profissionais
altamente qualificados, spin doctors com a missão de mentir, exagerar, dobrar,
contorcer e distorcer a realidade; que conseguem, num ápice, fazer esquecer um
acontecimento para realçar um outro que mais interessa ao seu clube do coração.
Há-os de todos os clubes grandes, em Portugal e no estrangeiro. Mas só olhando
com algum pormenor é que me apercebi da invasão vermelha aos jornais e canais
de televisão nacionais.
E depois, é isto que dá
pontos e marca golos? Não, claro que não. Mas ajuda? Ajuda e muito. Mudar a
forma como as pessoas olham para um determinado jogador, ou facto do jogo, faz
com que mais pessoas se desloquem ao estádio para ver a sua equipa; faz com que
mais pessoas acreditem que os outros, os rivais, são levados ao colo e que o
mundo é uma terrível injustiça e que os perseguidos são sempre os mesmos e que
isto é uma constante batalha de Termópilas e que juntos vencerão e que só a
união faz a força e outras coisas do género. E isso dá força. E isso dá suporte
e acima de tudo dá mais dinheiro ao clube em questão.
E é isto importante? Sim e não. No fundo, no fundo, é no futebol e não tem mais
consequências do que a habitual desilusão de final de época e uma ou outra
irritação pequenina. Mas é também um pequeno mas bem equipado laboratório onde
podemos acompanhar o crescimento de fungos maliciosos e perigosos para a saúde
da sociedade. No negócio do futebol, no ecossistema onde prosperam o futebol e
o jornalismo, podemos adivinhar o que se passa nos outros ecossistemas, esses
sim, mais determinantes na nossa qualidade de vida e na defesa dos nossos reais
e importantes interesses.
Mas sim, admito, esta é
também uma crónica sobre alguém que, embora permanentemente desiludido e sem
esperança, ainda arranja espaço para se irritar e revoltar com as putas e os
doutores deste planeta. Mesmo que no futebol. Mesmo sem consequências de maior
impacto. Irrito-me com estes agentes secretos do Benfica e desejo-lhes a morte
(figurativa) por breves instantes. Depois passa-me e convenço-me de que um dia
isto dá tudo uma volta e de que o sol nesse dia passará a brilhar no cu de
outros (talvez no meu) e de que assim haverá algum equilíbrio e justiça no
mundo. Mesmo que seja só futebol.
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