1ª introdução
De um certo ponto de vista, não existe melhor democracia que a do mundo animal. No mundo dos animais ditos «irracionais», os mais fortes dentro de um mesmo grupo, usam o seu poder para se assumirem como líderes, com regalias mas sem grandes abusos de poder. Eventualmente têm de defender a sua posição contra as tentativas de outros que desejam a mesma posição e que estão dispostos a lutar por ela. Ou seja, está no poder quem faz realmente por isso - mesmo que a coisa seja um tudo ou nada violenta.
2ª introdução
A Quarta Convenção de Genebra - assinada em 1949 e que revia as três anteriores, acrescentando regras que protegem todos os civís em período de guerra - entre muitas outras coisas importantes diz o seguinte:
Artigo 2.º
(...) A Convenção aplicar-se-á igualmente em todos os casos de ocupação total ou parcial do território de uma Alta Parte contratante, mesmo que esta ocupação não encontre qualquer resistência militar. (...)
Artigo 3.º
No caso de conflito armado que não apresente um carácter internacional e que ocorra no território de uma das Altas Partes contratantes, cada uma das Partes no conflito será obrigada aplicar, pelo menos, as seguintes disposições:
1) As pessoas que não tomem parte directamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas e as pessoas que tenham sido postas fora de combate por doença, ferimentos, detenção, ou por qualquer outra causa, serão, em todas as circunstâncias, tratadas com humanidade, sem nenhuma distinção de carácter desfavorável baseada na raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.
Para este efeito, são e manter-se-ão proibidas, em qualquer ocasião e lugar, relativamente às pessoas acima mencionadas:
a) As ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios;
b) A tomada de reféns;
c) As ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes; (...)
TÍTULO III
Estatuto e tratamento das pessoas protegidas
SECÇÃO I
Disposições comuns aos territórios das Partes no conflito e aos territórios ocupados
Artigo 31.º
Nenhuma coacção de ordem física ou moral pode ser exercida contra as pessoas protegidas, especialmente para conseguir delas, ou de terceiros, informações.
Artigo 32.º
As Altas Partes contratantes proíbem-se expressamente qualquer medida que possa causar sofrimentos físicos ou o extermínio das pessoas protegidas em seu poder. Esta proibição não tem em vista apenas o assassínio, a tortura, os castigos corporais, as mutilações e as experiências médicas ou científicas que não forem necessárias para o tratamento médico de uma pessoa protegida, mas também todas as outras brutalidades, quer sejam praticadas por agentes civis ou militares.
Artigo 33.º
Nenhuma pessoa protegida pode ser castigada por uma infracção que não tenha cometido pessoalmente. As penas colectivas, assim como todas as medidas de intimação ou de terrorismo, são proibidas. (...)
E eu podia continuar, se tal fosse necessário, mas dado o tema que se segue, parece-me que o essencial está aqui bem representado.
ABU GHRAIB
Depois da transcrição parcial da Convenção de Genebra, depois desta imagem, e acima de tudo, depois do título deste post, dá-me idéia de que não era realmente necessário pôr-me para aqui a escrever fosse o que fosse. Da mesma forma, não foi preciso assistir ao documentário que um canal nacional transmitiu a semana passada, para saber o que se passou na prisão de Abu Ghraib no início de 2004. Não foi necessário rever as inqualificáveis «fotos turisticas» tiradas por alguns soldados americanos tiraram das suas actividades lúdicas com prisioneiros iraquianos, para saber o que por lá se passou, ou sequer o que é um nó na garganta. Daqueles bem apertados, que fazem doer e chorar.
Mas infelizmente foi preciso que algumas pessoas - poucas, porque um documentário deste calibre é e será sempre empurrado para horários pouco nobres - o tivessem visto, para se darem conta do que se passou em Abu Ghraib. Infelizmente a desinformação continua a ser (ironicamente) o mais poderoso veículo de informação que existe. Mais até do que as Floribelas, Morangos e novelas da nossa estupidez. A desinformação informa. Informa aquilo que tem de ser informado para que não se façam muitas ondas, para que não se levantem muitos tapetes, para que não se descubram muitas sujidadezinhas atrás dos móveis. E funciona.
De todas as vergonhas americanas desde que o Tio Sam invadiu o Iraque, Abu Ghraib será sempre aquela que mais enoja, aquela que mais revolta, e aquela que mais facilmente nos remete à nossa qualidade mais irracionalmente violenta e vingativa. Sim porque, em certos casos, ser irracional é de facto uma qualidade. E que se fodam os new born christians, andróides telecomandados que apregoam a quem se der ao trabalho de lhes prestar atenção "assim tornamo-nos iguais a eles" sem saberem sequer o que raio isso significa! Este mundo, esta humanidade, não foram feitos para dar espaço a modernismos new age da merda paz e amor e sorriso permanente flautinhas de pan e músicas com sons de riachos e passarinhos a piupiuzar. Este mundo, esta humanidade, estes animais de merda que nem mereciam ser chamados de animais mas agora não me ocorre coisa melhor, mereciam a velha e boa lei do «olho por olho...». Estes pedaços de merda andróides telecomandados que obviamente estavam a pendurar pretos em árvores e a queimar cruzes nos everglades do Mississipi no dia em que deram a Convenção de Genebra em West Point; estes merdosos mereciam exactamente aquilo que impuseram aos prisioneiros de Abu Ghraib; os mesmos prisioneiros que estes energúmenos deviam ter protegido de quaisquer "tratamentos humilhantes e degradantes".
Não sou anti-americano, da mesma forma que não sou anti-seja-lá-o-que-for, e acho inclusive que os que se afirmam tão fervorosamente anti-qualquer-coisa, são-no por -lá está - pura desinformação e porque até já vai parecendo mal não ser anti-alguma-coisa. Sou, isso sim, anti-humano. Porque desprezo cada vez mais uma maioria que cresce ainda mais a olhos vistos. Porque me custa cada vez mais a adormecer sabendo que o mundo está uma merda, não por causa exclusiva dos americanos, mas por culpa de todos; os que fazem e os que ficam a ver aplaudindo alegremente.
Há mortos no Quénia? Quantos? Talvez milhares? Daqui a quinze dias reunimos um grupo de trabalho para resolver a coisa. Como disse? O Kofi Annan está engripado e a coisa vai ter de ser adiada? Ok, a malta diz aos quenianos que morram só mais um bocadinho e que assim que o Kofi estiver melhor - à custa de muito Vick Vaporub - voltamos a reunir o tal grupo de... «trabalho», reservamos alguns quartos nos hoteis mais caros de Nairobi, para o grupo e seus acompanhantes, e temos uma conversinha, sim?
Somos uma humanidade de merda, que gosta de fazer de África o seu recreio pessoal; o playground onde fazemos safaris com a nata do jet set, onde filmamos grandes produções de Hollywood, onde fazemos férias radicalmente românticas, onde construímos fábricas da Nike, Coca-Cola e da Barbie e onde ainda temos tempo para correr um Lisboa-Dakarzinho de quando em vez. A mesma África, se não me falha a memória, que morre todos os dias mais um bocadinho, à custa da fome, do HIV, da brutal criminalidade e de inúmeras guerras civís mesmo à nossa frente enquanto aplaudimos fervorosamente!
E a Ásia? E a América Latina? Usamos o orgulho de sermos ocidentais e particularmente de pertencermos à Velha Europa como se fosse um estandarte, vaidoso e ao mesmo tempo intimidatório, e no fundo não passamos de velhos decrépitos que nos mijamos pelas pernas abaixo, que bem podemos chamar pela enfermeira boazona que ela nunca vem, mas que ao fim de semana gostamos de vestir o nosso melhor fatinho e fingir que ainda somos bonitos, elegantes e muito garbosos. Fachada, hipocrisia, faz-de-conta! Somos uma merda, tão má como a merda que fez de Abu Ghraib mais do que uma simples prisão; a merda que transformou aquele local e aqueles prisioneiros em imortais. A merda dos americanos e a merda dos europeus, sempre de mãos dadas, mesmo que por trás das costas para os outros não verem.
E nós? Nós aplaudimos. E eles? Eles dizem que é errado e que vão tomar providencias e que isto assim não pode ser e... ficam à espera daquilo que é já uma certeza: o povo esquece tudo. O povo só reclama durante alguns dias e depois tudo passa. Estamos tão habituados à morte na televisão que já não ficamos chocados, enojados ou revoltados. E só reclamamos se alguém se colocar à frente do ecrã no momento em que um polícia militar estiver a espetar um pontapé bem assente na costelas de um tipo nu, amarrado e coberto de excrementos.
Animais? Animais irracionais? Gostava mesmo de conhecer a pessoa que inventou o conceito de «animal irracional». Gostava mesmo de saber a sua opinião, perante o mundo de merda e a humanidade de merda reinante. Os animais? São a maior democracia que existe. Não abusam do poder que conquistam e conhecem bem as regras pelas quais vivem e sobrevivem. Sem exageros, sem excessos, sem chocarem.
Abu Ghraib foi um dos piores episódios da história de merda da humanidade. Não foi o primeiro e não será com toda a certeza o último. Os portugueses na guerra colonial, os espanhois, antes, na sua guerra civil, os americanos no Vietname, os vietnamitas no Vietname, os Sérvios, os Russos, os Iraquianos, os Paquistaneses, os Israelitas, os Australianos que podiam legalmente matar aborígenes, os Chineses. Nenhum destes ou dos que faltam neste minúscula lista, foi à escola no dia em que se falou da dignidade humana. E qualquer dia esquecemo-nos todos de que isso algum dia existiu.