ACERCA (DO MANIFESTO EM DEFESA) DA CULTURA
Sou incondicionalmente a favor do Manifesto em Defesa da
Cultura. Sou a favor deste e de todos os manifestos que defendam a melhoria das
condições em que se faz cultura em Portugal. Não há como não ser a favor. Por ser
a favor deste manifesto e por querer saber mais acerca dele e do combate que
pretende travar, participei ontem numa reunião de trabalho com vista a
desenvolver novas formas de luta e a agendar um regresso aos protestos. A reunião
serviu para conhecer melhor as linhas com que se cose o manifesto e para
concluir uma série de outras coisas igualmente preocupantes.
Desde logo a fraca adesão à referida reunião. Já se sabe que
é bom enaltecer o espírito de quem, a um Domingo à tarde, sai de sua casa para
aderir à luta. No entanto, custa-me a crer que os organizadores tenham
verdadeiramente ficado impressionados ou sequer satisfeitos com as cerca de
trinta pessoas que participaram na conversa / debate.
Por outro lado, ficou bem evidente que os presentes (e os
não presentes) têm uma relação obviamente emocional com o problema em discussão
e que isso acaba sempre por significar um pequeno desvio ao motor do Manifesto
em Defesa da Cultura. Nada de errado aqui: há realmente uma série de problemas
na cultura que não se resolvem com o tal 1% do orçamento de estado que os
subscritores do manifesto exigem ao governo. E esses problemas, percebi eu
ontem na dita reunião, estão solteiros de uma abordagem séria e efectiva. Porque
são problemas graves que os artistas e produtores de cultura sentem no seu
dia-a-dia e que acabam abafados por uma luta meramente orçamental e que nada
tem a ver com os problemas de base da cultura em Portugal.
Não que nada disto invalide essa luta. Pelo contrário. Não podemos
é enveredar por uma espécie de fuga para a frente, saltando por cima das outras
dificuldades e dos erros crassos na educação cultural de um povo e de um país. Por
outras palavras, este manifesto deve ter em conta esses outros problemas e
abraçá-los com igual veemência e força.
Porque se um dia o país acordar com a notícia de que um
qualquer governo decidiu ceder às exigências e conceder o tal 1% do orçamento
de estado à cultura, ainda assim haverá questões sérias que ficarão por
resolver ou, pior, serão ainda mais graves e determinantes da qualidade da
cultura que fazemos e a que assistimos.
Nesse dia, o governo continuará a assumir publicamente que
os projectos artísticos de Lisboa merecem receber mais dinheiro do que os do
Porto, por nenhuma outra razão evidente que não a estratégico-geográfica. Um olhar
objectivo às tabelas dos apoios concedidos pela DG Artes permite perceber que o
maior apoio concedido a uma estrutura do Porto não anda longe da média dos
apoios concedidos aos projectos da capital. Para além disso, a quantidade de
projectos apoiados nas duas cidades é outra disparidade que só parece ser
explicada pelo facto de uns serem de Lisboa e os outros da outra cidade lá para
cima.
Outra questão que ficará por resolver (e na minha opinião
que ficará ainda pior) é a dos valores milionários que se pagam a certos profissionais
de teatro. Longe de ser uma questão simples de discutir, já que envolve coisas
tão etéreas quanto o valor da criação artística e o património intelectual, a
verdade é que esta é uma daquelas matérias que ocupa grande parte das conversas
de café entre os outros artistas, os que não recebem valores milionários.
Outra questão que ficará sempre por resolver, mesmo que haja
muito mais dinheiro para produção artística e cultural, é a dos preços de
bilheteira cobrados por quem faz da cultura a sua profissão. Eu acredito na
educação gratuita e acredito ainda mais na cultura e na arte como formas de
educação. Acredito, por isso mesmo, que os espectáculos que são pagos pelo
governo deviam ser mais baratos para quem os quer ver. Só assim se educa um
povo e só assim se consegue levar mais pessoas ao teatro, aos concertos, aos
bailados e às óperas.
Mais uma vez, nada disto invalida ou põe em causa a luta
pelo aumento do orçamento para a cultura. O que pode pôr em causa essa luta é a
evidente falta de coesão e de solidariedade entre os que desta luta retirariam
maiores dividendos, os artistas. Artistas que parecem não querer saber ou que
parecem comprometidos com a esmola do governo e que por isso não se querem
colocar numa situação em que fiquem de alguma forma (não consigo imaginar qual)
fragilizados na corrida ao subsídio. Poderá ser por aqui que este manifesto não
venha a adquirir a força suficiente para fazer a diferença e para alcançar os
objectivos a que se propõe. O que será uma lástima.
A cultura portuguesa precisa de melhorar, disso não há
dúvidas. Precisa de chegar a mais público, de o educar e de o ensinar a ir ver.
Precisa de ser mais exigente consigo própria e de dar ferramentas ao seu
público para que exija mais qualidade e variedade e para que tenha mais vontade
de ver mais, saber mais, querer mais. Para que isso aconteça não basta que o governo
mude a sua maneira de olhar a produção cultural em Portugal. Para que isso
aconteça é necessário que ambas as partes, governo e agentes culturais, mudem
de uma vez por todas a forma como se olham e parem de virar as costas uns aos
outros. Acima de tudo, é obrigatório que os artistas parem de uma vez por todas
de desconfiarem uns dos outros, que comecem a respeitar-se e a apoiar-se e que
deixem definitivamente de se achar melhores do que o parceiro do lado e a
assumir a sua parte da culpa. E, como alguém me dizia ontem, que parem de se
vergar para mostrar cada vez mais o rego. Quando isso acontecer, a cultura
começa imediatamente a melhorar, com ou sem 1% do orçamento de estado.