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Bom Karma... ou não!

quarta-feira, março 05, 2014

VICTOR GASPAR E O SURFISTA PRATEADO



Todos somos familiares ao conceito da história ser circular, cíclica e repetitiva. Todos conhecemos bem expressões como há mar e mar, há ir e voltar e o que sobe tem de descer ou não dar ponto sem nó, etc. Todas servem perfeitamente a história que a seguir se conta e que é estranhamente semelhante a outra, do universo da banda desenhada americana, e a que vou dedicar algumas linhas biográficas.

O Surfista Prateado foi criado por esse monstro incontestável da BD chamado Jack Kirby em 1966. Antes de ser Surfista Prateado chamava-se Norrin Radd e habitava o planeta Zenn-La. Certo dia, o planeta foi visitado por Galactus, o Devorador de Mundos, outro alienígena que viajava pelas galáxias em busca da energia de planetas para saciar a sua gigantesca fome cósmica. Norrin Radd, abnegado e decidido a não deixar que o mundo onde vivia a sua amada fosse consumido pelo apetite do imparável Galactus, propõe um negócio ao esfomeado gigante: ser seu arauto e partir em busca de outros planetas, bons para comer e destruir. Uma espécie de pacto com o diabo, se quisermos. Galactus aceita, Zenn-La sobrevive-lhe e Norrin Radd é transformado em Surfista Prateado. Recebe uma porção mínima do poder cósmico do seu novo amo e uma prancha de surf que lhe permite viajar pelo universo à velocidade da luz e deixa o seu planeta de origem para nunca mais voltar. A sua viagem leva-o ao planeta Terra, cheio de energia, perfeito para o estômago do seu descomunal senhor, e onde encontra a oposição de um grupo de heróis conhecidos como Quarteto Fantástico. Decididos a não entregar o planeta ao apetite alarve do extraterrestre, convencem o Surfista Prateado de que ele é bem melhor do que aquilo que faz e ajudam-no a descobrir a humanidade que entretanto havia perdido. Consecutivamente, este trai Galactus e ajuda o Quarteto a vencer a batalha que se segue. Galactus, aborrecido com a traição do seu arauto, pune-o com o exílio no planeta Terra, de onde nunca mais poderá sair.

É esta, mais coisa, menos coisa, a história do surfista Prateado. É esta também a história de Victor Gaspar, o antigo ministro das finanças de Portugal. Sem prancha de surf, é certo. Sem a beleza poética que Jack Kirby emprestou ao seu personagem, é verdade. Sem a capacidade de reencontrar a humanidade de que se havia esquecido em sacrifício supremo por aqueles que amava e pelo planeta que o havia visto nascer. Porque a comparação entre Gaspar e o surfista acaba aqui, na humanidade, nos escrúpulos, nas intenções; na honestidade maldita da função amaldiçoada que era o pacto assinado com um monstro consumidor de mundos. O herói da Marvel era terrivelmente sincero em relação às suas intenções, Gaspar, esse, é um daqueles seres rastejantes a que a política já nos habituou e que disfarça todas as suas acções, impedindo-nos de ver os reais objectivos que o espicaçam.

Fosse outro o enquadramento, e não seria difícil sentir orgulho bacoco por termos um Português á frente de um dos gabinetes mais importantes do FMI. Tendo sucedido o que sucedeu a Portugal às mãos deste ex-ministro, e há tão pouco tempo, é impossível não acreditar que tudo isto foi um pacto com o diabo, assinado e rubricado em todas as cópias por um homem que sonhou ser maior do que a sua estatura e do que o futuro da sua carreira profissional. É inevitável acreditar que todo o plano de Victor Gaspar enquanto ministro das finanças teve como único objectivo não a tão propalada recuperação económica do país, mas a abertura das portas de uma das organizações mais poderosas do mundo. Que o que Gaspar queria era um gabinete, uma secretária, uma equipa de assessores e um ordenado de dezenas de milhares de euros. Independentemente do custo. Independentemente de ser muito próximo do tempo em que o mal foi feito, tão próximo que seria impossível não repararmos nisso, não pensarmos nisso, não concluirmos isso.

Victor Gaspar recebeu as ordens que recebeu do FMI por duas razões e por duas razões apenas: servir os melhores interessas da organização e conquistar um lugar confortável nos seus quadros. Conseguiu-o, como seria de esperar, e dessa fama nunca mais se livra. Não que isso o apoquente. A falta de escrúpulos dos políticos tem uma fama que a precede e as ligações de políticos no activo e de parlamentares eleitos pelo povo a grandes interesses económicos e a grandes empresas da banca mundial tem sido debatida o suficiente para que não sejamos constantemente apanhados de surpresa. Saber que Victor Gaspar comprou o bilhete para o FMI à custa dos portugueses na mesma semana em que pudemos ver o que Paulo Morais foi à assembleia da república dizer sobre a corrupção na classe parlamentar e o que Freitas do amaral expôs num dos telejornais nacionais já não é tão assustador como poderia ser há uns anos. Nós sabemos que é assim. Nós sabemos que ser governante ou deputado neste país é o melhor negócio de uma vida. Nós sabemos que os elegemos não para eles olharem por nós mas para que eles possam olhar por si e pelos seus. Para que possam fazer fortuna, abrir portas, travar conhecimentos; para fazer o que for preciso, seja qual for o preço a pagar, não por eles mas por nós, para defenderem os seus interesses. Interesses financeiros, diga-se. Ficarem mais ricos, mais poderosos, mais respeitados e temidos.

E ainda assim vamos alegremente às urnas. Ainda assim, acreditamos que nisto da democracia temos um papel importante a cumprir, que devemos pôr em prática o nosso direito de voto, essa liberdade conquistada e que por ter sido roubada às mãos rijas da ditadura tem de ser acarinhada como se fosse o menino Jesus salvador deitadinho na manjedoura. E demoramos a perceber que ao votarmos nesta gente rastejante estamos a votar neste sistema de corrupção e de ligações perigosas (para nós e só para nós). Não queremos entender, de uma vez por todas, que ao votarmos nestes energúmenos sem classe estamos a autorizá-los a fazer tudo o que puderem para ficarem mais ricos, mais poderosos, mais respeitados e temidos. Nós somos os únicos culpados por sermos um país com uma máfia autorizada por escrutínio popular, uma gangue de bandidos, corruptos e agiotas a quem alegremente abrimos a porta da nossa casa e a nossa carteira. Porque continuamos a acreditar que um destes dias vai realmente aparecer alguém que olhe por nós e que nos ajude abnegadamente. Alguém que não queira uma secretária no FMI e que não tenha como principal interesse o engordar da sua conta bancária.

E é por isto tudo que a comparação entre Victor Gaspar e o Surfista Prateado acabou lá em cima no terceiro parágrafo. Porque o Surfista Prateado comoveu-se com os humanos, recuperou a sua humanidade e ajudou quem merecia. Victor Gaspar e os da sua espécie não querem ter nada a ver com algo remotamente parecido com humanidade porque isso só serviria para lhes estragar os planos. Com a nossa autorização, que continuamos a dar plenos poderes a pessoas que são incapazes de se revoltar contra os gigantes consumidores de mundos. Não que isto seja também uma comparação. Ao pé da banca e do FMI, Galactus não é mais do que um menino da primária a quem roubaram a lancheira com a sandes de manteiga que trazia de casa e que chora agora sentadinho no banco do recreio.