VICTOR GASPAR E O SURFISTA PRATEADO
Todos somos familiares ao conceito da história ser circular,
cíclica e repetitiva. Todos conhecemos bem expressões como há mar e mar, há ir e voltar e o
que sobe tem de descer ou não dar
ponto sem nó, etc. Todas servem perfeitamente a história que a seguir se
conta e que é estranhamente semelhante a outra, do universo da banda desenhada
americana, e a que vou dedicar algumas linhas biográficas.
O Surfista Prateado foi criado por esse monstro incontestável
da BD chamado Jack Kirby em 1966. Antes de ser Surfista Prateado chamava-se
Norrin Radd e habitava o planeta Zenn-La. Certo dia, o planeta foi visitado por
Galactus, o Devorador de Mundos, outro alienígena que viajava pelas galáxias em
busca da energia de planetas para saciar a sua gigantesca fome cósmica. Norrin
Radd, abnegado e decidido a não deixar que o mundo onde vivia a sua amada fosse
consumido pelo apetite do imparável Galactus, propõe um negócio ao esfomeado
gigante: ser seu arauto e partir em busca de outros planetas, bons para comer e
destruir. Uma espécie de pacto com o diabo, se quisermos. Galactus aceita,
Zenn-La sobrevive-lhe e Norrin Radd é transformado em Surfista Prateado. Recebe
uma porção mínima do poder cósmico do seu novo amo e uma prancha de surf que
lhe permite viajar pelo universo à velocidade da luz e deixa o seu planeta de
origem para nunca mais voltar. A sua viagem leva-o ao planeta Terra, cheio de
energia, perfeito para o estômago do seu descomunal senhor, e onde encontra a
oposição de um grupo de heróis conhecidos como Quarteto Fantástico. Decididos a
não entregar o planeta ao apetite alarve do extraterrestre, convencem o
Surfista Prateado de que ele é bem melhor do que aquilo que faz e ajudam-no a
descobrir a humanidade que entretanto havia perdido. Consecutivamente, este
trai Galactus e ajuda o Quarteto a vencer a batalha que se segue. Galactus,
aborrecido com a traição do seu arauto, pune-o com o exílio no planeta Terra,
de onde nunca mais poderá sair.
É esta, mais coisa, menos coisa, a história do surfista
Prateado. É esta também a história de Victor Gaspar, o antigo ministro das
finanças de Portugal. Sem prancha de surf, é certo. Sem a beleza poética que
Jack Kirby emprestou ao seu personagem, é verdade. Sem a capacidade de
reencontrar a humanidade de que se havia esquecido em sacrifício supremo por
aqueles que amava e pelo planeta que o havia visto nascer. Porque a comparação
entre Gaspar e o surfista acaba aqui, na humanidade, nos escrúpulos, nas
intenções; na honestidade maldita da função amaldiçoada que era o pacto
assinado com um monstro consumidor de mundos. O herói da Marvel era terrivelmente
sincero em relação às suas intenções, Gaspar, esse, é um daqueles seres
rastejantes a que a política já nos habituou e que disfarça todas as suas
acções, impedindo-nos de ver os reais objectivos que o espicaçam.
Fosse outro o enquadramento, e não seria difícil sentir
orgulho bacoco por termos um Português á frente de um dos gabinetes mais
importantes do FMI. Tendo sucedido o que sucedeu a Portugal às mãos deste
ex-ministro, e há tão pouco tempo, é impossível não acreditar que tudo isto foi
um pacto com o diabo, assinado e rubricado em todas as cópias por um homem que
sonhou ser maior do que a sua estatura e do que o futuro da sua carreira
profissional. É inevitável acreditar que todo o plano de Victor Gaspar enquanto
ministro das finanças teve como único objectivo não a tão propalada recuperação
económica do país, mas a abertura das portas de uma das organizações mais
poderosas do mundo. Que o que Gaspar queria era um gabinete, uma secretária,
uma equipa de assessores e um ordenado de dezenas de milhares de euros. Independentemente
do custo. Independentemente de ser muito próximo do tempo em que o mal foi
feito, tão próximo que seria impossível não repararmos nisso, não pensarmos
nisso, não concluirmos isso.
Victor Gaspar recebeu as ordens que recebeu do FMI por duas
razões e por duas razões apenas: servir os melhores interessas da organização e
conquistar um lugar confortável nos seus quadros. Conseguiu-o, como seria de
esperar, e dessa fama nunca mais se livra. Não que isso o apoquente. A falta de
escrúpulos dos políticos tem uma fama que a precede e as ligações de políticos
no activo e de parlamentares eleitos pelo povo a grandes interesses económicos
e a grandes empresas da banca mundial tem sido debatida o suficiente para que
não sejamos constantemente apanhados de surpresa. Saber que Victor Gaspar
comprou o bilhete para o FMI à custa dos portugueses na mesma semana em que
pudemos ver o que Paulo Morais foi à assembleia da república dizer sobre a corrupção
na classe parlamentar e o que Freitas do amaral expôs num dos telejornais
nacionais já não é tão assustador como poderia ser há uns anos. Nós sabemos que
é assim. Nós sabemos que ser governante ou deputado neste país é o melhor
negócio de uma vida. Nós sabemos que os elegemos não para eles olharem por nós
mas para que eles possam olhar por si e pelos seus. Para que possam fazer
fortuna, abrir portas, travar conhecimentos; para fazer o que for preciso, seja
qual for o preço a pagar, não por eles mas por nós, para defenderem os seus
interesses. Interesses financeiros, diga-se. Ficarem mais ricos, mais poderosos,
mais respeitados e temidos.
E ainda assim vamos alegremente às urnas. Ainda assim,
acreditamos que nisto da democracia temos um papel importante a cumprir, que
devemos pôr em prática o nosso direito de voto, essa liberdade conquistada e
que por ter sido roubada às mãos rijas da ditadura tem de ser acarinhada como
se fosse o menino Jesus salvador deitadinho na manjedoura. E demoramos a
perceber que ao votarmos nesta gente rastejante estamos a votar neste sistema
de corrupção e de ligações perigosas (para nós e só para nós). Não queremos
entender, de uma vez por todas, que ao votarmos nestes energúmenos sem classe
estamos a autorizá-los a fazer tudo o que puderem para ficarem mais ricos, mais
poderosos, mais respeitados e temidos. Nós somos os únicos culpados por sermos
um país com uma máfia autorizada por escrutínio popular, uma gangue de
bandidos, corruptos e agiotas a quem alegremente abrimos a porta da nossa casa
e a nossa carteira. Porque continuamos a acreditar que um destes dias vai
realmente aparecer alguém que olhe por nós e que nos ajude abnegadamente. Alguém
que não queira uma secretária no FMI e que não tenha como principal interesse o
engordar da sua conta bancária.
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