O FADO PLASTIFICADO
Acerca de uma conversa, há poucos dias, e de como as coisas são abordadas sem o devido cuidado - ou seja, post arrogante e potencialmente arrogante à vista.
Quer-me parecer que a palavra blues, denominação mais do que conhecida para um dos mais antigos e influentes géneros musicais dos Estados Unidos da América, é habitualmente tratada de forma leviana e sem se perceber completamente o seu significado. É natural, de certa forma; as palavras, às vezes, assumem a forma de som e/ou rótulo, e acabam a perder a razão pela qual foram escolhidas. E os blues, são muita coisa, mas começaram por ser canções doridas do trabalho dos escravos negros do sul americano, para passarem a ser melodias e palavras dolorosas de amores perdidos e mal tratados, e que falavam das difíceis condições de vida dos negros, e de histórias de crimes (de paixão, muitas vezes) e da vida nas prisões. Ou seja, não há aqui palavras de alegria, felicidade ou bem-estar. E por isso se chamam blues.
oh, tell me, baby
What's the, matter with you?
Why don't ya hear me cryin'?
What's the, matter with you?
Why don't ya hear me cryin'?
Os pais dos blues como os conhecemos hoje, eram homens e mulheres sem educação, musical ou de qualquer outra espécie, que quase não sabiam ler, que aprendiam sozinhos a tocar guitarra, piano ou harmónica e que definitivamente não tinham vozes limpas, cristalinas e, muitas vezes, sequer afinadas. Mas cantavam com a alma. A alma, essencial a quem quer cantar sobre as dores de se ser humano.
This bad love she got, makes me laugh and cry.
Makes me really know, that I'm too young to die.
If you hear me howlin', calling on my darling.
Makes me really know, that I'm too young to die.
If you hear me howlin', calling on my darling.
Isto a propósito deste novo fado que a todos encanta e que abre fronteiras e leva o nome de Portugal lá fora e todas essas patacoadas turísticas que não interessam nem ao menino Jesus. Um fado cantado por vozes poderosas e cristalinas, que dizem todas as letrinhas de todas as palavras, vozes bonitas, sem dúvida, mas que me fazem olhar de esguelha para quem as canta. E sim senhor, belas vozes as destes recentes nomes do fado, nada contra, muito bem, keep up the good work, palminhas.
No entanto, toda a gente sabe - ou devia saber - que o fado não nasceu no Coliseu dos Recreios, no Pavilhão Atlântico ou em nenhuma das gigantescas salas de espectáculo espalhadas por esse mundo fora. Toda a gente sabe - ou devia saber - que o fado nasceu no mais baixo e reles da sociedade portuguesa, e que os seus pais, eram homens e mulheres sem educação, musical ou de qualquer outra espécie, e que não tinham, definitivamente não tinham, estas belas e treinadas vozes de hoje em dia. Mas que lá cantavam com a alma, cantavam. E sinto falta desses fadistas de beco e esquina, que mesmo desafinados, mesmo sem se perceber metade do que dizem, muito menos do que cantam, conseguiam emocionar quem os ouvia.
O fado tornou-se limpo, higiénico, asséptico, classe média-alta, burguês, turístico. Podia ser vendido às fatias nas lojas onde se compram os galos de Barcelos, camisolas do Ronaldo e vinho do Porto a dez euros a garrafa. É um fado de plástico, um fado em pó, destinado a ser misturado com tudo o que vem à mão, mixado, modernizado - dizem eles - adaptado aos novos tempos e aos novos públicos. E os novos públicos nem percebem que este epíteto é, na verdade, um insulto da pior espécie. «Novos públicos» significa um público que começou só agora a ouvir uma coisa que sempre existiu, sem saber nada do género ou das suas origens e que, provavelmente, quando confrontado com uma gravação do Marceneiro, por exemplo, ficará espantado, admirado e chocado.
O blues, esse, também já foi muito mal tratadinho, sem dúvida. No entanto, no país que o viu nascer a coisa é-lhe mais equilibrada. Os artistas que se deixaram influenciar pelos pais do género, esforçaram-se por não desrespeitar as suas regras, princípios e do's and dont's. Artistas como Johnny Cash, Tom Waits e, mais recentemente, como Jack White, e isto só para citar os mais mediáticos. Pouco importa a qualidade da voz dos intérpretes. O que importa é que souberam preservar uma herança riquíssima e com um peso emocional que, a perder-se, transformaria os blues em outra coisa qualquer. Mas nunca em blues.
Este fado, o novo fado, neo-fado, sub-fado, pseudo-fado, é falso de reais emoções. É fado para inglês ver. Não chega a ser faduncho.
My baby caught the train, left me all alone
My baby caught the train, left me all alone
She knows I love her, she doin' me wrong
My baby caught the train, left me all alone
She knows I love her, she doin' me wrong