Coisa estranha, sentir pela primeira vez, e aos 35 anos, uma quase irresistível vontade de sair a meio de uma peça de teatro.Ontem, e em dia de abertura oficial da 31ª edição do FITEI, fui ver o espectáculo “Say It With Flowers”, de António Pires. Foi tudo tão fraquinho, que quase podia fazer uma lista de pontos negativos e poupar a crónica com pretensão a crítica de teatro.“Say It With Flowers” é um espectáculo que se mexe pelos universos do movimento coreografado e do teatro-dança, partindo de um texto de Gertrude Stein e usando as palavras como elemento rítmico, graças à exaustiva repetição das mesmas… o que acaba por se revelar uma tremenda seca!
Ao fim de meia hora já não conseguia ouvir o martelar de “George Henry, Henry Henry…”, e estava tão irritado com a artificialidade de um texto sem qualquer tipo de sentido, que já só me apetecia saltar lá de cima do balcão. Depois todo o corpo da peça, assente, como já referi, numa coreografia de movimentos e de alguns (poucos) elementos de dança. Ainda na véspera, um fantástico actor/encenador do Porto me dizia que para se fazer um espectáculo de movimento – como o que fui ver ontem – era obrigatório um grupo de bons actores. Não quero com isto dizer que os actores que subiram ao palco do S. João não têm qualidade. Quero, isso sim, defendê-los na dignidade com que tentaram manter um espectáculo para o qual nunca estiveram, obviamente, preparados. Em teatro de movimento, e especialmente quando o trabalho envolve uma coreografia mecanizada, existe uma regra absolutamente inviolável: os movimentos, a simultaneidade dos intervenientes, a disciplina e rigor da execução, e acima de tudo a qualidade na repetição dos gestos, devem ser inabaláveis. E assim não aconteceu. Nada de simultaneidade, disciplina e rigor, e fraca qualidade no que à repetição dos gestos diz respeito. Um actor quando faz um movimento e o repete logo de seguida, deve fazê-lo exactamente da mesma maneira. Se tal não acontecer, o pior então é corrigir esse movimento e mostrar ao público que a coisa foi mesmo sem querer. A ideia de um espectáculo de movimento que vive essencialmente dessa tal repetição de movimentos, gestos e posições, é transmitir uma imagem e uma mensagem através dessa mecanização física. Quando tudo é mal executado, o trabalho não só cheira a amadorismo como desmancha essa imagem que se quer (mais uma vez) rigorosa. Deixamos de ver o personagem e passamos a ver o actor. E não há coisa pior em teatro.
Outra regra essencial para a boa execução de um espectáculo desta natureza, é a gestão destas repetições de movimento e de texto. A primeira vez que um actor faz ou diz algo em palco, surpreende o espectador. A segunda, serve para dar a entender que existe ali uma intenção. A terceira consolida a sequência, mas já representa um risco. Esse risco instala-se de vez à quarta repetição, o mesmo é dizer, quando o espectador desabafa um “eu já sabia que ele ia fazer isto”. O espectáculo de António Pires tem exactamente uma hora a mais. Uma hora que representa exactamente o dobro do texto que deveria ter sido dito, e o dobro das sequências coreográficas que deviam ter sido representadas. Porque Pires desconhece obviamente essa regra. O exemplo é fulcral e, desde logo, preocupante: o espectáculo começa bem e logo o encenador se encarrega pessoalmente de o estragar. A sequência inicial mostra-nos um actor a caminhar até à boca de cena para anunciar o nome da peça, claramente à espera do aplauso que nunca surge. Pires não percebeu que a falta de reacção do público não podia durar mais do que três repetições, e não se precaveu, munindo o actor de uma solução mais rápida e, lá está, que surpreendesse a audiência. Estes são os pontos negativos mais gritantes de um espectáculo em que, como já disse, tudo correu mal. A escolha de microfones ajuda actores que têm de falar uns por cima dos outros e por cima de uma banda sonora às vezes alta de mais, mas torna-se completamente desadequada quando os mesmos actores têm de se mexer, agarrar, atirar para o chão e os mesmos microfones falham, fazem ruído e captam sons que se sobrepõem às palavras. A utilização de espelhos no fundo do palco para nos deixarem ver o que cinco monólitos tapam, não foi pensada para salas com mais do que a plateia, porque simplesmente a opção não funciona se o espectador estiver sentado no balcão, na tribuna ou nos camarotes de uma sala clássica como o S. João. Os monólitos também não servem na perfeição o propósito para o qual foram pensados, pura e simplesmente porque nunca conseguem esconder a totalidade do corpo ou da roupa dos actores. A opção de utilizar um texto bilingue é completamente desprovida de sentido, e a necessidade/opção de ser declamado muitas das vezes em simultâneo – como se uma tradução em tempo real
(mal feita, já agora) se tratasse – prova-se um verdadeiro desastre. Não só porque irrita – até dar vontade de saltar vocês sabem de onde… - mas também porque ao criar uma cacofonia imperceptível, baralha ainda mais qualquer tentativa de fazer chegar uma mensagem.
Resultado de tudo isto? Ao fim de meia hora os actores já deixaram escapar o público, que fala animosamente para o lado dos aumentos dos combustíveis, da situação na antiga Birmânia e se ri, fora de tempo, desrespeitando o seu trabalho e o seu esforço.
O espectáculo é chato, despropositado, sem intenção, sentido ou lógica que não seja a estética – e mesmo essa falha redondamente. E a única coisa boa? Os actores. Embora desinspirados, algo trôpegos e obviamente nada talhados para trabalhos do género, defendem com dignidade aquilo que os puseram a fazer. Dão energia aos personagens – por vezes em demasia – e tentam divertir-se. Os únicos momentos mais… interessantes de todo o espectáculo existem unicamente por sua exclusiva responsabilidade. Resultam de pequenos apontamentos cómicos que são valorizados não pela encenação – outra vez, arrastada, sonolenta e pesadona -, mas pelo cunho pessoal de cada um dos intervenientes. Foi por respeito ao seu esforço que não saí da sala ainda o espectáculo não ia a meio.
Em suma, António Pires continua a querer fazer aquilo para que claramente não tem jeitinho nenhum, e a munir-se de actores que acabam por ser massacrados por um negócio para o qual não estudaram convenientemente. Nada funciona em “Say It With Flowers”, e o resultado final assemelha-se a um grupo de estivadores, vestidos a rigor, a dançar o segundo quadro do Lago dos Cisnes. E até isso seria provavelmente mais divertido.
Foto: Mário Sousa