TRUE DETECTIVE PASSO EM FALSO
Na década de 80 havia um carro de que gostava muito, o
Lancia Delta. Era um carro agressivo, de linhas austeras e, em algumas versões,
era uma bomba, um animal selvagem. No início da década de 90 a Lancia decidiu
que era altura de renovar a gama Delta e lançou um carro com um visual bem
diferente. Lembro-me da minha revolta e de comentar com um amigo «deviam
ter-lhe chamado outra coisa qualquer. Isto não é um Delta».
Hoje, sem a revolta mas com a mesma dose de desilusão, digo o mesmo do segundo
tomo de True Detective: não se devia chamar True Detective. Devia chamar-se TO
LIVE AND DIE IN VINCI ou THE VINCI CONNECTION ou simplesmente VINCI. E eu sei,
é injusto comparar as duas temporadas de True Detective e é ainda mais injusto
avaliar esta última à lupa da primeira. Mas a vida é mesmo assim e ninguém no
mundo consegue travar as suas expectativas. E também por isso a segunda
temporada de True Detective não se devia chamar True Detective.
Pronto, resolvidos que estamos com esta questão dos nomes
das coisas, passemos à série propriamente dita (e se ainda não a viram, esta é
a altura de pararem de ler ou vão ficar muito irritados comigo).
Quase tudo nesta série é bom que se farta. Os actores estão
muito bem, tudo é muito bem filmado e a banda sonora – mais um trabalho de
mestre de T. Bone Burnett – é assombrosa e inquietante. E é aqui que começam os
problemas, porque a banda sonora é, na verdade, a única coisa inquietante em
toda a série. Tudo o resto é de uma banalidade surpreendente, visto e revisto
em centenas de filmes e de outras séries que se dedicam a tratar de um assunto,
pelos vistos, tão caro aos americanos: os círculos de poder / corrupção / crime
organizado / festas secretas com putas de luxo tudo muito bem embrulhado num
crime antigo que ficou por resolver e que está (disfarçadamente) no centro de
toda a acção e pincelado com personagens que têm mais esqueletos no armário que
uma lata tem feijões.
Ou seja, True Detective 2 (chamemos-lhe assim para
facilitar) falha estrondosamente onde o seu parente mais velho tinha
surpreendido um mundo inteiro: no argumento e na forma como ele é contado. E já
se sabe, é o binómio história / realização que torna um objecto destes em algo
extremamente viciante e de que apetece falar e teorizar. As teorias em torno de
True Detective 1 surgiram porque a série se dedicava, com mestria, a atirar-nos
areia para os olhos, nunca revelando a mão, deixando-nos a suspeitar até da nossa
própria sombra.
Ao invés, True Detective 2 obriga-nos a criar todo o tipo de
teorias porque pura e simplesmente ninguém percebe o que raio se está a passar.
O argumento de TR2 (ainda mais simples assim) é um emaranhado tão grande, tão
cheio de personagens mais ou menos relevantes, de curvas e contracurvas e de
assuntos, que é constante a confusão de quem a vê – exemplo disso, a pergunta tantas
vezes repetida sempre que um nome é referido na série: «quem é este?»
TR2 é um passo falhado de forma estrondosa, e prova disso
mesmo – e isto é só uma teoria em que acredito com muita força – é que há um
antes e um depois dentro da série. Há um antes do grande tiroteio e um depois
do grande tiroteio. E este tiroteio foi claramente metido à pressão para que os
argumentistas tivessem a oportunidade de fazer reset e simplificar uma história
que de tão confusa começava a perder público.
Parte da explicação para a brutal queda de qualidade de TR2
pode residir no facto de que já não Cary Fukunaga quem realiza a série. Foi ele
o realizador de todos os episódios de TR1 e foi a sua linguagem que fez daquele
objecto uma raridade, completamente original e melhor e mais viciante a cada
episódio. TR2 é entregue, como tem sido costume nas séries americanas, a
diversos realizadores. Às vezes funciona, às vezes dá nisto.
E volto a admitir que é injusto comparar TR2 com TR1.
Especialmente porque uma coisa como TR1 aparece uma vez na vida e fica com o
seu lugar bem reservado no tempo e no espaço. E também por isso os produtores
deviam ter resistido à tentação de patinarem no sucesso conquistado pela primeira
série e abdicarem do nome que lhes deu tanta fama e tanto dinheiro. Não
conseguiram e deram um passo falso bem maior do que as suas pernas.
True Detective 2 é viciante simplesmente, tristemente, porque
ninguém quer acreditar no que está a ver e acima de tudo não quer acreditar que
não está a gostar e por isso tem de ver mais um episódio, só mais um para ver
se alguma coisa faz sentido. É a pior das razões para se continuar a ver uma
série, mas é também tão inevitável como as expectativas.
A próxima semana trará o último capítulo de TR2 e, adivinho
eu, nenhuma surpresa, nenhum choque de impacto sísmico. Principalmente não
trará a perspectiva de uma terceira série. O melhor que pode acontecer agora, a
um projecto que teve tudo para mudar este formato, é uma longa pausa para
reflexão. Correr atrás de um sucessor por causa da pressão do público – como
aconteceu inequivocamente assim que todos se aperceberam que a primeira True
Detective era coisa para não dar uma segunda temporada – só vai piorar o que já
está mal. Mas neste mundo da televisão, tal e qual como no mundo do cinema, o
que manda é o dinheiro e projectos com uma assinatura de autor são animais em
extinção que merecem ser acarinhados, guardados no seu habitat e quanto menos
se lhes mexer melhor. Assim devia ter sido com True Detective. Não foi e é uma
enorme e irreparável pena.