PARA ACABAR DE UMA VEZ COM O PROBLEMA
Para acabar de uma vez com o problema entram duas
Kalashnikov numa redacção em Paris e quando saem levam doze consigo, de caneta
em punho, mais um na rua, a sua arma bem guardada, que nem no punho estava.
Para acabar de uma vez com o problema somos todos
subitamente franceses, somos todos subitamente Charlie Hebdo, somos todos anti-terrorismo
e, pior do que isso, somos muitos, mais do que éramos ontem, anti-muçulmanos. E
de repente somos todos adeptos de um discurso de choque, pontual e que tem,
como sempre, o prazo de validade de um requeijão de Seia.
Subitamente somos todos Charlie Hebdo como não fomos todos
subitamente James Foley ou Steven Sotloff, os jornalistas americanos
decapitados por jihadistas do Estado Islâmico, ao vivo e a cores, porque enfim,
eram americanos, estavam a pedi-las. Como não fomos Yousaf Khokhar, Robert Shamwami Shalubuto, Aung Kyaw Naing, Maria del
Rosario Fuentes Rubio e como não fomos nenhum dos 138 jornalistas que em 2014
morreram no desempenho da sua profissão. Porque esses morreram lá longe, sabiam
dos riscos que corriam e olha, paciência, já sabiam o que lhes podia calhar em
sorte.
Ontem fomos todos
franceses e fomos todos Charlie Hebdo como hoje não somos iemenitas como os
trinta que foram assassinados ontem numa academia de polícia do Iémen por um
bombista suicida. Porque isso é lá entre eles numa terra que não interessa a
ninguém, que se lixem, que se matem uns aos outros, que se expludam.
Hoje, como ontem,
seremos todos Charlie Hebdo. Uns porque sentem a dor do que aconteceu em Paris
no dia 7 de Janeiro de 2015; outros, porque têm uma vontade inesgotável de
vociferar contra o poder imperialista dos EUA e qualquer pretexto é um bom
pretexto para culpar os americanos destas treze mortes; outros, os políticos,
porque nada funciona melhor do que um massacre desta natureza para consolidar
as parvoíces que apregoam.
E no fundo é mentira
que somos todos Charlie Hebdo. É mentira porque para sermos todos Charlie Hebdo
teríamos de ser Charlie Hebdo todos os dias e não somos. Não falamos para não
ofender, não dizemos para não arreliar, não gozamos porque temos medo de perder
o emprego, não escrevemos porque tal fulano tem poder e pode dar-nos cabo da
vidinha. Na verdade, do que menos precisam os jornalistas assassinados é da
nossa solidariedade. Não precisam dela e nem nós merecemos oferecê-la a quem
verdadeiramente se arrisca todos os dias em nome da liberdade de expressão e da
liberdade de informação, duas liberdades para que nós nos estamos todos os dias
a borrifar e que só nos interessam se não for para falar mal do meu partido ou
da minha religião ou do meu clube de futebol.
Alguém que admiro
profundamente e que partilha o meu amor e a minha obsessão pela liberdade de expressão
e pela liberdade do humor, escreveu ontem na sua página de Facebook o direito de insultar é tão importante como
o direito de nos sentirmos insultados – mas nenhum deles é razão válida para cortar a
palavra, a ideia ou muito menos a vida a ninguém. Como nada é razão que
justifique a censura.
E a censura não é o
que aconteceu ontem em França. O que aconteceu ontem em França é algo para que
não encontro nenhuma qualificação realmente justa. A censura começa no não digas isso, o que tu foste dizer ou ainda
te vais lixar com isso. E quem tem medo de falar ou dos que os outros
possam dizer, quem tem uma postura interesseira relativamente à liberdade de
expressão não pode ser Charlie Hebdo. Não tem esse direito. Porque a liberdade
de expressão deve ser defendida todos os dias e em todas as ocasiões e não só
quando é interrompida por duas Kalashnikov, uma faca na garganta, um carro
carregado de explosivos e não sei quantos jornalistas assassinados.
O massacre no
Charlie Hebdo é daquelas coisas que me dá um nó na garganta. Que me emociona como
me emocionam na verdade as manifestações de solidariedade que têm enchido as
páginas das redes sociais e as primeiras páginas dos jornais a sério. O massacre
no Charlie Hebdo é um massacre, ponto final. Não é uma teoria da conspiração de
como foi levado a cabo por activistas da extrema-direita. Não é uma desculpa
para falar no colonialismo americano, nos sionistas, na globalização ou no
monstro do capitalismo. É um massacre de treze pessoas, jornalistas, incómodos,
sem medo de dizer, escrever e desenhar o que lhes ia na cabeça, sem medo de
ofender, insultar, gozar e, com isso tudo, denunciar tudo e todos, sem fazer
reféns, sem medo, sem medo, sem medo.
Hoje somos todos franceses
e todos Charlie Hebdo – e isso enche-me de orgulho, em muitos casos, e de
vergonha em tantos outros. E devíamos ser todos os dias franceses, americanos,
iraquianos, chilenos, sul-africanos e devíamos todos os dias defender o direito
à informação e a liberdade de expressão, mesmo que ofensiva, mesmo que
insultuosa. Esperar pela morte de quem luta pelas nossas liberdades para sair à
rua em sua defesa é a única liberdade a que não temos direito.