kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

domingo, abril 17, 2016

AS PUTAS E OS DOUTORES



Esta crónica não é sobre futebol.

Tinha 17 anos quando sofri o meu primeiro desgosto de amor pelo jornalismo. Aconteceu no meu primeiro dia de trabalho no jornal O Jogo depois de vir da minha primeira entrevista e quando me sentei para a passar para o computador e me dei conta de que a redação – um comprido e estreito rectângulo – se dividia em dois grupos bem distintos: na primeira metade os jornalistas de futebol, na segunda e mais pequena metade, os de todas as outras modalidades, as «amadoras», onde eu estava a escrever tudo o que sabia sobre o Michael Jordan, o Clyde Drexler e o Dominique wilkins. Mais do que paternalismo, era a velha história dos filhos da mãe e dos filhos da puta. O jornalismo, aprendi nesse dia, está cheio de ambos.

O jornalismo partiu-me o coração uma segunda vez e não muito tempo depois da primeira – só tinha 17 anos, é a idade ideal para partirmos o coração em catadupa – quando o Pinto da Costa e o Valentim Loureiro entraram pela primeira vez (para mim) na redação, acompanhados por um séquito que, só mais tarde viria a saber, era habitualmente constituído por árbitros e empresários das mais diversas áreas, para levarem uns quantos jornalistas de futebol a almoçar. Não muito longe dali existia um bar de putas onde, imagino eu, os mesmos intervenientes comiam a fruta que já deu tanto que falar. 

Mais ou menos vinte anos mais tarde, tive a certeza absoluta de algo que já há muito me vinha atormentando o coração jornalista. Foi durante o curso de jornalismo que deixei de ter dúvidas de que os jornalistas não são hoje mais do que secretárias do senhor doutor; uma espécie de profissional altamente qualificado para escrever uma alarvidade de palavras por minuto que lhe são ditadas pelas agências de comunicação, assessores de imprensa e, acreditem ou não, boatos ou quase boatos que circulam pela world wide web. São – ou continuam a ser – ao mesmo tempo, as putas de todos os outros doutores. Deitam-se com eles, jantam e bebem copos com eles, planeiam com eles e partilham interesses com eles. Obedecem-lhes cegamente.


Mas esta também não é uma crónica sobre jornalismo.

Sou sportinguista. Para espanto de muitos amigos, que não entendem como isso é possível tendo eu vivido quase toda a minha vida no Porto e que chegam a perguntar-me «de onde é que isso veio?», sou sportinguista. Sou, quero acreditar, um sportinguista saudável: não espumo de raiva perante os adversários, não bato na minha mulher quando a equipa perde e quando a equipa perde, perde sozinha, que as minhas derrotas estão muito longe do campo de futebol dos outros. Não sou sócio, não pago quotas e não tenho um cachecol verde e branco. Se sou sportinguista, isso significa que, como dizem os rivais, estou habituado a sofrer tantos anos sem conquistas significativas. Mas na verdade não sofro. Vou desistindo, isso talvez. Vivo vitória a vitória sem pensar no grande final, no money shot que é a conquista de um campeonato ou de um título europeu. Percebo, por essa razão, o que é ser adepto de um clube mais pequeno, daqueles que por muito bem que joguem nunca terão como objectivo o campeonato nacional. E vivo bem com isso.

Como vivo muito bem com o Benfica tricampeão. Parece-me evidente de que será o Benfica novamente campeão, este ano. Mas a verdade é que o Sporting andou lá perto e já há muitos anos não me convencia de que talvez fosse este ano, de que talvez fosse desta que o Sporting voltava a sair à rua para festejar um título cada vez mais raro. E, portanto, acompanhei o campeonato com mais atenção. Li mais jornais do dia seguinte, vi mais debates televisivos feitos por adeptos que se espumam de raiva, que se insultam e mentem e que são assumidamente e desavergonhadamente tendenciosos e que mesmo perante uma fractura exposta conseguem dizer que nem houve falta, muito menos penálti. Ao fazê-lo, dei-me conta, novamente, de que o ecossistema onde vivem as putas e os doutores está mais vivo do que nunca e de que tem mais poder que alguma vez teve. Penso eu que terá a ver com o facto de o futebol movimentar hoje mais milhões do que algum dia movimentou. E isto já se sabe, um ecossistema que produz muita comida é um ecossistema rico mas brutal, onde só sobrevivem os que aprendem a viver nele. Os restantes, os velhos e os doentes, esses ficam pelo caminho, tornam-se invisíveis, definham e morrem.

E portanto, esta não é uma crónica sobre o Sporting ou sobre o Benfica.

Esta é uma crónica sobre o poder que o Benfica tem nos media portugueses. É uma crónica sobre o exército de bombistas-suicidas, de snipers, de grupos de operações especiais que o Benfica conseguiu infiltrar nos órgãos de comunicação social. São profissionais altamente qualificados, spin doctors com a missão de mentir, exagerar, dobrar, contorcer e distorcer a realidade; que conseguem, num ápice, fazer esquecer um acontecimento para realçar um outro que mais interessa ao seu clube do coração. Há-os de todos os clubes grandes, em Portugal e no estrangeiro. Mas só olhando com algum pormenor é que me apercebi da invasão vermelha aos jornais e canais de televisão nacionais.

E depois, é isto que dá pontos e marca golos? Não, claro que não. Mas ajuda? Ajuda e muito. Mudar a forma como as pessoas olham para um determinado jogador, ou facto do jogo, faz com que mais pessoas se desloquem ao estádio para ver a sua equipa; faz com que mais pessoas acreditem que os outros, os rivais, são levados ao colo e que o mundo é uma terrível injustiça e que os perseguidos são sempre os mesmos e que isto é uma constante batalha de Termópilas e que juntos vencerão e que só a união faz a força e outras coisas do género. E isso dá força. E isso dá suporte e acima de tudo dá mais dinheiro ao clube em questão. 

E é isto importante? Sim e não. No fundo, no fundo, é no futebol e não tem mais consequências do que a habitual desilusão de final de época e uma ou outra irritação pequenina. Mas é também um pequeno mas bem equipado laboratório onde podemos acompanhar o crescimento de fungos maliciosos e perigosos para a saúde da sociedade. No negócio do futebol, no ecossistema onde prosperam o futebol e o jornalismo, podemos adivinhar o que se passa nos outros ecossistemas, esses sim, mais determinantes na nossa qualidade de vida e na defesa dos nossos reais e importantes interesses.



Mas sim, admito, esta é também uma crónica sobre alguém que, embora permanentemente desiludido e sem esperança, ainda arranja espaço para se irritar e revoltar com as putas e os doutores deste planeta. Mesmo que no futebol. Mesmo sem consequências de maior impacto. Irrito-me com estes agentes secretos do Benfica e desejo-lhes a morte (figurativa) por breves instantes. Depois passa-me e convenço-me de que um dia isto dá tudo uma volta e de que o sol nesse dia passará a brilhar no cu de outros (talvez no meu) e de que assim haverá algum equilíbrio e justiça no mundo. Mesmo que seja só futebol. 

quinta-feira, abril 07, 2016

«LARGA A ARMA OU EU LEIO»



Aqui há mais ou menos dez anos, aconteceu-me uma coisa daquelas que, mesmo sem darmos conta, passam a ser as histórias que mais vezes contamos e vamos contar até ao fim, repetindo-a até as pessoas se chatearem de nós.

E portanto, há coisa de mais ou menos dez anos, estava eu e o Marco no clube de comédia dele, e que nos servia a todos de segunda casa, quando entra o Carlos, esbaforido e com ar de puto que tinha acabado de encontrar a revista indecente do irmão mais velho, sorriso bem maior que a boca e os olhos a saltarem-lhe para fora dos óculos. Trazia uma pequena malinha metálica, ao estilo do espião que veio sabe-se lá de onde, e que acompanhou com um «sabem o que é que eu tenho aqui?» Aquelas perguntas a que claramente ninguém sabe dar resposta, pois se o invólucro da surpresa está fechado e bem opaco…

Abriu a malinha metálica e lá dentro vinha uma réplica perfeita de uma arma automática, cromada, pesada, bem mais real do que o nosso conforto aguentava. E diz o Carlos «temos de fazer alguma coisa com isto.» Não se referia, o Carlos, a algo de ilícito ou violento, claro. Na altura tínhamos um grupo de comédia que se dividia entre o stand up comedy e sketches feitos ali mesmo ao vivo. Era isso que ele queria fazer e para levar a palco nessa mesma noite. Passados uns bons quinze minutos tínhamos a coisa delineada e mais ou menos (nada, na verdade) ensaiada. E que era o seguinte:

Eu subia ao palco como que para anunciar os comediantes de serviço dessa noite mas antes anunciava que naquele palco também havia lugar à cultura e que, sendo assim, ia ler alguns poemas cuidadosamente selecionados. Abria o livro e no preciso momento em que ia começar a ler, o Marco, tipo alto e bem largo de ombros, irrompia por entre as mesas e cadeiras de arma em punho e dizia, «larga o livro ou eu disparo!» Confusão, barulho e tal, as pessoas a perceberem claramente a brincadeira e tal, eu muito confuso no palco a dizer que era só um livro, ambiente bastante agressivo e coiso e tal e quando o Marco subia ao palco para me tratar mal e me enfiar uns bem afinados pontapés nos costados – já depois de ter disparado a arma e assustado toda a gente que estava na sala, inclusive os funcionários que já sabiam que a coisa era a brincar – saltava o Carlos do público, de livro em punho, para gritar «larga a arma ou eu leio!».

Repetia-se o ciclo da confusão e do barulho, o Carlos ainda agarrava numa cliente (nunca num cliente, no entanto…) e ameaçava que se a arma não fosse lançada para longe lhe leria umas passagens dum livro. Como sempre, e porque nunca preparávamos a cena até ao fim, improvisávamos um final assim meio cuspido e pronto, o público adorava e ria muito e pedia mais uns copos. Noite feita.

Serve isto para quê? Desde logo para contar a história pela enésima vez e para dizer que os livros sempre foram uma arma – acho até que demos ao sketch o nome de A Palavra é uma Arma. E como arma que sempre foram, sempre foram perigosos por poderem cair nas mãos erradas e serem mal interpretados e mal utilizados. Há uma corrente política, por exemplo, que pegou num livro de um conhecido filósofo alemão e o mundo nunca mais foi o mesmo, mais para mal do que para bem.
E portanto, os livros são armas poderosas e que, bem utilizadas, podem fazer uma montanha de diferença nas vidas das pessoas. Levar alguém à cadeia é que já parece um tudo ou nada exagerado. Ser castigado por escrever, ler ou por difundir livros, sejam quais forem os livros, é coisa da idade média e já não acontece num mundo do século XXI. E no entanto, e no espaço de mais ou menos um mês, o Irão aumenta a recompensa pela morte de Salman Rushdie, ainda por causa do malfadado livro que o cavalheiro escreveu há coisa de umas décadas, e em Angola condenaram-se uns rapazes porque andavam a ler um livro nada simpático para o regime déspota de um certo José Eduardo.

Não é por acaso. Os déspotas têm fama de serem retrógrados e muito agarrados ao dinheiro e ao passado. Por isso mesmo, alguns conseguem o apoio – ou o silêncio que apoia – desse tal movimento político que nasceu de uma interpretação conveniente do tal livro do tal fulano alemão que filosofava umas coisas mais ou menos políticas e que é um movimento ainda muito agarrado ao passado, assim um tudo ou nada, antiquado, a saber a azedo.

Ou seja, os livros continuam a ser uma arma, o que é bom, mas continuam a ser uma arma de duas lâminas, que serve uns e outros, o que é o que tem de ser, mas que nem sempre é porreiro.

E portanto, as coisas são como são. Pelo menos já não se queimam livros a torto e a direito. Ou melhor…

segunda-feira, março 28, 2016

A MORTE RÁPIDA DE UMA IDEIA ROMÂNTICA DE PARAÍSO



Estive nos Açores há 17 anos. Na altura,por mais ou menos 200 euros, podíamos escolher três viagens de avião: uma para deixar o continente, duas entre ilhas e a de regresso era oferta da casa. Na altura, já havia turistas em São Miguel, viajantes no Faial, exploradores no Pico e eu e a minha namorada nas Flores.

Na altura, os Açores eram a minha ideia de paraíso na terra. Um lugar intocável, uma beleza natural impressionante e pessoas simpáticas e acolhedoras na medida certa.

Como em tudo na vida, mudam-se os tempos e muda tudo. Hoje as furnas são fechadas e já não se pode lá cozinhar o cozido como antigamente a não ser que se pague um bilhete. O acesso à Caldeira Velha, hoje em dia, é como um acesso a uma qualquer piscina municipal. Ou seja, os Açores começaram a cobrar por algo que era uma das principais e mais importantes características do arquipélago: a integração perfeita da população na natureza.

Dizem os responsáveis que é para o bem da população, que todos ganham. Eu tenho sérias dúvidas, especialmente quando os mesmos responsáveis anunciam com orgulho que vão aumentar o número de camas no arquipélago e assim dar resposta ao número crescente de turistas. O que isso quer dizer é que vão aumentar também as lojas de souvenirs, os produtos para inglês ver e o custo das dormidas e comidas. 

É o turismo na sua máxima força a fazer o que faz sempre: a transformar, a adaptar e a estragar o que havia. É o turismo a moldar um sítio às necessidades dos que trazem dinheiro nos bolsos. O mesmo turismo que transformou Lisboa e Porto nos parques temáticos de um país que na verdade não existe, em hologramas de coisas que não estão realmente lá, em caras feias pelo excesso de operações plásticas e maquilhagem de má qualidade.

Dirão alguns que sou retrógrado, que os tempos mudam e que devemos mudar com eles, que o turismo é também a sobrevivência das cidades e dos países e dos que lá moram. Recuso essa ideia e acrescento que (especialmente) no caso dos Açores, o que devia ser feito era mantê-los exactamente como sempre foram, melhorando algumas infraestruturas, com certeza, e limitando o número de visitantes por ano.

Menos gente, menos plástico, menos cosmética num lugar que atrai quem lá quer ir precisamente pela natureza intocável e deslumbrante e pelo modo de vida de quem lá mora. Veja-se, mais uma vez, o caso de Lisboa e Porto e dos inúmeros agentes turísticos que já se começam a queixar das dores do crescimento súbito e a alertar para o rebentar das costuras e consecutiva insustentabilidade das infraestruturas. Não é por acaso e nem é um exagero. Vários estudos comprovaram já o que mais se temia e de que menos se fala: nas cidades mundiais em que o turismo sofreu um crescimento abrupto, a sua população nativa decresceu igualmente de forma violenta; desistiu ou foi empurrada para fora dali, para os subúrbios ou até para outras cidades.

Estive em Londres há 18 anos. Na altura, e à chegada a Portugal, vários amigos me perguntaram como eram os bares e as discotecas e outras coisas, para mim, menos importantes. Respondi-lhes sempre da mesma maneira: importante é conhecer a cidade. Perceber como funciona por baixo daquela camada gordurosa de corantes e edulcorantes que é o turismo.

Ainda hoje acredito nisso. Acredito que não é preciso uma cidade engalanar-se para receber as visitas. Que deve ser como sempre foi, que os seus encantos estão lá como sempre estiveram e que não precisam de ser vitaminados para agradar a quem vem de fora. No caso dos Açores acredito nisso com ainda maior convicção e receio, com um medo que é quase pânico, de que esteja a crescer uma nova ilha da Madeira naquele ponto do Atlântico: saloia, cara, feita de luzes fluorescentes e casinos e bares de karaoke. Se assim for, começa a desaparecer um dos últimos paraísos na terra e um que para nós, por muito que não nos tenhamos dado conta, era bem mais importante do que qualquer escritor, futebolista ou chefe de cozinha.

quarta-feira, janeiro 27, 2016

A DINAMARCA ESTÁ PODRE



Eu não tenho uma solução para o problema dos milhares de refugiados que todos os dias chegam à Europa. Ou melhor, tenho, mas é uma solução que implicava descer várias camadas de níveis históricos, sociais, políticos e cronológicos; uma espécie de viagem no tempo ao tempo em que tudo começou a sair da linha, a ficar enviesado e a retorcer-se para o que é hoje uma realidade (aparentemente) inelutável.

Da mesma forma, não sei se a Dinamarca é um país racista. Dizer que sim seria fácil, à luz dos últimos acontecimentos e das decisões políticas assumidas pelo seu governo. Seria fácil e seria igualmente a simplificação de uma questão que não se pode, penso eu, resumir a motivos de preconceito estúpido. Há algo mais do que apenas racismo nestas tomadas de posição da Dinamarca e de outros países europeus.

Há racismo, pois claro, mas há também uma arrogância de países ricos que perante os pobres o que querem mais é não serem chateados. Como aquele milionário que sai do restaurante cinco estrelas Michelin e se afasta do pedinte que não come há uns dias e que ainda é capaz de vociferar um qualquer insulto ou piadola aviltante. É disto que se fala quando se fala da velha Europa: um conjunto de ricaços, no seu clube de cavalheiros, bem acomodados, bem comidos e melhor bebidos que escarnicam dos que lá fora não têm sequer um caixote para se sentar. A Europa, a velha e orgulhosa e babona Europa, é um burguês eternamente enjoado, permanentemente enfadado com as vidas dos outros.

E pelo meio há racismo. E pelo meio há xenofobia. Que não são mais do que as armas escondidas que garantem que a boa vida dos europeus não é ameaçada pela pobreza e miséria e desgraça dos outros. Pobreza e miséria e desgraça que na origem – a tal origem a que era preciso recuar para se tentar resolver o problema – teve o dedo sujo da Europa.

Há uns meses demo-nos conta de que os nossos amigos, familiares e conhecidos eram racistas e xenófobos. Subitamente, a maior rede social do mundo era a malha que une duas traineiras e em que todo o tipo de peixe podre vinha cair. E ficámos chocados. Chocaram-nos as palavras de quem, jurávamos, não seria nunca capaz de tanto ódio, de tanta frieza e insensibilidade. De quem desejava ainda mais desgraça àqueles desgraçados que davam à costa meio mortos, todos mortos, cada vez mais mortos, ainda bem que mortos, que nós vivos já cá temos que chegue. Abriram-nos a boca de espanto à custa de porrada da feia, à custa da desilusão e da vergonha de conhecermos pessoas capazes de tão asqueroso comportamento.

E, como sempre nestas coisas, o indivíduo tornou-se horda e a horda tornou-se nação e a nação vai bem lançada para se tornar um continente inteiro. A Europa vaidosa de si própria, orgulhosa da sua humanidade, sucumbiu à mentira da benevolência, da defesa dos direitos humanos, do anfitrião que sabe receber e mostrou a sua verdadeira cara feia de burguês que nasceu com um pedacinho de cocó debaixo da ponta do nariz.

E portanto temos a Dinamarca a fazer a vez dos nazis e dos russos de há 80 anos; a ficar com os pertences de quem lhe pede ajuda, a recusar a reunião de familiares separados na freima da fuga ao horror. E temos cercas e arame farpado e cães e soldados; somos uma quinta de luxo, um resort for members only, protegido pelo que de mais avançado há em matéria de segurança contra assaltos. Só que não estamos a ser assaltados e as nossas tácticas de defesa não são avançadas: são uma simples réplica do pior que a humanidade já teve e foi tendo, escondido dos olhos mais atentos por campanhas de marketing e de frases bonitas para t-shirts, never again, never forget

E tenho vergonha de ser europeu a passos largos para ter vergonha de ser humano.

«Os turcos! Os turcos!»
«Quero que se fodam!»


escreveu Howard Barker na peça Os Europeus em 1987. E nada mudou, entretanto. E esta repetição de ciclos que se repetem dentro de si mesmos cria uma inevitabilidade de repetição que me faz acreditar cada vez mais que nada disto algum dia terá solução.  

quarta-feira, dezembro 30, 2015

UM FILME DO CARALHO




Há filmes muito bons e há filmes muito maus. Pelo meio, há todos aqueles filmes de diferentes tipos e qualidades – os fraquinhos, os pretensiosos, os que vemos mesmo sabendo que são maus mas que entretêm a malta, aqueles que podiam ser bons e aqueles que quase eram maus. E depois há os filmes do caralho. E Sicario é um filme do caralho.

E é um filme do caralho porque, pese embora de uma simplicidade rara, tem uma série de detalhes a que convém dar muita atenção. O argumento, de poucas palavras, sem floreados, curto, mas gerido como se de uma epopeia de quatro horas se tratasse, a contradizer todos os que acham que um bom argumento é um argumento palavroso, com curvas perigosas e desfechos surpreendentes. Os actores, em underacting bem medido, bem pesado, a contribuírem com o meramente suficiente para nos conduzir por uma história, mais uma vez, que podia ser resumida com «foi mesmo só isto que aconteceu». A câmara, saída das melhores lições de como filmar acção com Kathryn Bigelow. E a banda sonora, assombrosa, uma outra personagem por si só.

E no topo disto tudo, uma das melhores sequências de acção sem acção dos últimos anos. Uma cena de perseguição automóvel em que nenhum automóvel persegue outro; uma cena em que a tensão se constrói quase por si só, como se ninguém estivesse ao leme da realização; uma cena feita quase exclusivamente pelas câmaras e pela banda sonora e que enerva, inquieta e faz prever, ao segundo, que algo muito mau vai acontecer. Ou seja, que nos coloca na pele dos protagonistas de uma forma de que o cinema moderno, inundado de CGI e fogo de artifício, já há muito se esqueceu.

Num ano em que o narcotráfico esteve claramente em grande – Narcos, uma série da Netflix, e Cartel Land, um documentário – Sicario leva a palma de ouro com distinção. Merece ser visto e revisto, não pela complexidade e pela hipótese de vermos algo que nos havia escapado na primeira vez. Merece ser revisto porque é cinema do bom, com actores dos bons, sólido e sério e que sabe bem. Só isso. Simples.

sexta-feira, outubro 23, 2015

UMA CRÓNICA PEQUNINA SOBRE A GRANDE DESILUSÃO DO ANO QUE ATÉ É DA PIXAR E QUE ATÉ FOI UM TREMENDO SUCESSO



Não seria muito desafiante escrever um título que fosse mais longo do que o que há para dizer acerca de Inside Out. O filme da Pixar, que foi um tremendo sucesso de Verão - como tudo o que a Pixar fez e vier a fazer - é fraquinho. E é fraquinho a todos os níveis. O argumento, desde sempre um dos gigantes trunfos das obras daquele estúdio, é curtinho, desinteressante e um dos mais infantis alguma vez saídos das cabeças pixarianas; a animação, sempre muito boa, mas desta vez um tudo ou nada atrás dos seus antecessores; o humor, sempre rico e exigente, foi substituído por piadas fáceis e fofinhas; e tudo sabe a uma tremenda perda de tempo, a uma enorme desilusão a algo que foi feito assim a correr muito porque não podia passar um ano sem um novo filme Pixar. Se me perguntassem, diria que Inside Out foi feito pela equipa da Pixar que normalmente está sentada no banco. Assim ao género de «só entram em campo porque é um jogo da taça». 
Inside Out não presta para grande coisa, temo que Good Dinosaur lhe siga as pisadas e espero que seja Anomalisa a salvar um ano que, no que diz respeito à animação, está a ser um grande pastel cheio de ar. 
Será que isto significa que os grandes estúdios se sentaram à sombra fresquinha do sucesso e da qualidade das grandes obras de animação que fizeram tanto pelo cinema nos últimos 15 anos?

terça-feira, agosto 04, 2015

TRUE DETECTIVE PASSO EM FALSO



Na década de 80 havia um carro de que gostava muito, o Lancia Delta. Era um carro agressivo, de linhas austeras e, em algumas versões, era uma bomba, um animal selvagem. No início da década de 90 a Lancia decidiu que era altura de renovar a gama Delta e lançou um carro com um visual bem diferente. Lembro-me da minha revolta e de comentar com um amigo «deviam ter-lhe chamado outra coisa qualquer. Isto não é um Delta». 


Hoje, sem a revolta mas com a mesma dose de desilusão, digo o mesmo do segundo tomo de True Detective: não se devia chamar True Detective. Devia chamar-se TO LIVE AND DIE IN VINCI ou THE VINCI CONNECTION ou simplesmente VINCI. E eu sei, é injusto comparar as duas temporadas de True Detective e é ainda mais injusto avaliar esta última à lupa da primeira. Mas a vida é mesmo assim e ninguém no mundo consegue travar as suas expectativas. E também por isso a segunda temporada de True Detective não se devia chamar True Detective.

Pronto, resolvidos que estamos com esta questão dos nomes das coisas, passemos à série propriamente dita (e se ainda não a viram, esta é a altura de pararem de ler ou vão ficar muito irritados comigo).

Quase tudo nesta série é bom que se farta. Os actores estão muito bem, tudo é muito bem filmado e a banda sonora – mais um trabalho de mestre de T. Bone Burnett – é assombrosa e inquietante. E é aqui que começam os problemas, porque a banda sonora é, na verdade, a única coisa inquietante em toda a série. Tudo o resto é de uma banalidade surpreendente, visto e revisto em centenas de filmes e de outras séries que se dedicam a tratar de um assunto, pelos vistos, tão caro aos americanos: os círculos de poder / corrupção / crime organizado / festas secretas com putas de luxo tudo muito bem embrulhado num crime antigo que ficou por resolver e que está (disfarçadamente) no centro de toda a acção e pincelado com personagens que têm mais esqueletos no armário que uma lata tem feijões.

Ou seja, True Detective 2 (chamemos-lhe assim para facilitar) falha estrondosamente onde o seu parente mais velho tinha surpreendido um mundo inteiro: no argumento e na forma como ele é contado. E já se sabe, é o binómio história / realização que torna um objecto destes em algo extremamente viciante e de que apetece falar e teorizar. As teorias em torno de True Detective 1 surgiram porque a série se dedicava, com mestria, a atirar-nos areia para os olhos, nunca revelando a mão, deixando-nos a suspeitar até da nossa própria sombra.

Ao invés, True Detective 2 obriga-nos a criar todo o tipo de teorias porque pura e simplesmente ninguém percebe o que raio se está a passar. O argumento de TR2 (ainda mais simples assim) é um emaranhado tão grande, tão cheio de personagens mais ou menos relevantes, de curvas e contracurvas e de assuntos, que é constante a confusão de quem a vê – exemplo disso, a pergunta tantas vezes repetida sempre que um nome é referido na série: «quem é este?»

TR2 é um passo falhado de forma estrondosa, e prova disso mesmo – e isto é só uma teoria em que acredito com muita força – é que há um antes e um depois dentro da série. Há um antes do grande tiroteio e um depois do grande tiroteio. E este tiroteio foi claramente metido à pressão para que os argumentistas tivessem a oportunidade de fazer reset e simplificar uma história que de tão confusa começava a perder público.

Parte da explicação para a brutal queda de qualidade de TR2 pode residir no facto de que já não Cary Fukunaga quem realiza a série. Foi ele o realizador de todos os episódios de TR1 e foi a sua linguagem que fez daquele objecto uma raridade, completamente original e melhor e mais viciante a cada episódio. TR2 é entregue, como tem sido costume nas séries americanas, a diversos realizadores. Às vezes funciona, às vezes dá nisto.

E volto a admitir que é injusto comparar TR2 com TR1. Especialmente porque uma coisa como TR1 aparece uma vez na vida e fica com o seu lugar bem reservado no tempo e no espaço. E também por isso os produtores deviam ter resistido à tentação de patinarem no sucesso conquistado pela primeira série e abdicarem do nome que lhes deu tanta fama e tanto dinheiro. Não conseguiram e deram um passo falso bem maior do que as suas pernas.  



True Detective 2 é viciante simplesmente, tristemente, porque ninguém quer acreditar no que está a ver e acima de tudo não quer acreditar que não está a gostar e por isso tem de ver mais um episódio, só mais um para ver se alguma coisa faz sentido. É a pior das razões para se continuar a ver uma série, mas é também tão inevitável como as expectativas.

A próxima semana trará o último capítulo de TR2 e, adivinho eu, nenhuma surpresa, nenhum choque de impacto sísmico. Principalmente não trará a perspectiva de uma terceira série. O melhor que pode acontecer agora, a um projecto que teve tudo para mudar este formato, é uma longa pausa para reflexão. Correr atrás de um sucessor por causa da pressão do público – como aconteceu inequivocamente assim que todos se aperceberam que a primeira True Detective era coisa para não dar uma segunda temporada – só vai piorar o que já está mal. Mas neste mundo da televisão, tal e qual como no mundo do cinema, o que manda é o dinheiro e projectos com uma assinatura de autor são animais em extinção que merecem ser acarinhados, guardados no seu habitat e quanto menos se lhes mexer melhor. Assim devia ter sido com True Detective. Não foi e é uma enorme e irreparável pena.