kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

O VOTO E A PEDRA



E de repente o mundo das redes sociais acordou para o perigo do nacionalismo, do fascismo e do neonazismo. Por força dos que se tem passado na Ucrânia, vários são os que têm vindo para as páginas do universo digital preocupados com o que vai ser do mundo assim que estes movimentos assumam o poder. Para reforçar a sua consternação publicam ensaios, teses e teorias – da conspiração, muitas delas – acerca dos perigos do ressurgimento de tais forças no seio da Europa. Destes, alguns apoiaram a revolta de Kiev até que ficaram a saber, pasme-se!, que na Ucrânia também existem movimentos de extrema-direita.

Existem na Ucrânia como existem, há já alguns anos, em outros países da Europa de Leste. E bastante activos, diga-se. Como existem na Rússia, na Polónia, na Hungria e, em boa verdade, como existem no resto do continente, mesmo que mais ténues e pouco impressionantes. Como existem políticas de extrema-direita em governos como o da França, Espanha e, mais recentemente, da Suiça. Por opção ou por desconhecimento estes activistas das redes sociais acreditam que estes movimentos e partidos são financiados pela UE e pelos EUA, eternos interessados em desfazer quaisquer resíduos da antiga União Soviética e assim continuar a conquistar aliados comerciais. Esquecem-se, estes preocupados cidadãos, que um governo de extrema-direita dificilmente faria quaisquer acordos de aliança económica quer com os EUA, quer com a EU.

E não é mentira, de facto. Americanos e europeus continuam, hoje, a fazer tudo o que podem para desafiar o poder da Rússia, para deitar a língua de fora ao governo de Putin e dizer roubámos mais uma aldeia ao grande império enquanto se riem agarrados à pança capitalista. Tudo isto é verdade. O que preocupa, no entanto, é que ao dirigirem a sua atenção para estas teorias da conspiração se esquecem, ou ignoram, as verdadeiras razões – ou pelo menos as mais importantes – por trás deste crescimento da direita na Europa.

Porque também não é menos verdade que, em situações de grave crise económica, torna-se muito mais simples passar ideias fascistas e de extrema-direita a um povo que por força das dificuldades se torna mais permeável à alternativa política. Mesmo que a alternativa política seja abjeta e perigosamente odiável. Por falsos motivos financeiros, fica mais fácil justificar o ódio pelos emigrantes, esses ladrões de empregos, e leis antiaborto, esse sorvedouro de dinheiros públicos. Como se torna mais compreensível, por falsas razões de defesa da dignidade humana, limitar as liberdades religiosas aos muçulmanos, esses terroristas em potência e a quem não se pode confiar um metro quadrado de espaço público.

Como também não é menos verdade que a esquerda europeia tem sido totalmente ineficaz na conquista de credibilidade e que os sucessivos governos de esquerda e centro-esquerda não se conseguem livrar de uma forte responsabilidade na crise que atravessamos. Da mesma forma que não conseguem oferecer uma alternativa válida aos milhões de europeus desiludidos com o andar das coisas. Como não conseguem escolher líderes que motivem o povo, que se façam ouvir, que mostrem que podem ser diferentes de todo o lixo político que todos os dias aparece na televisão para falar aos cidadãos. Que não são mais um, igual a todos os outros que vieram antes.

E sim, a extrema-direita é sempre um perigo à espreita, hoje mais do que há uns anos. E sim, está a ganhar força, está a crescer e a conquistar cada vez mais seguidores. Mas o medo que tenho da extrema-direita é um medo quase irracional, quase sem razão, em parte porque não acredito ou não consigo acreditar, que os grandes horrores com que o fascismo e o nazismo marcaram a história da humanidade, possam voltar a acontecer num mundo aberto e hoje sempre exposto aos olhares de todos. E até posso ser ingénuo. E até podemos voltar a observar esses horrores em países ditos civilizados. A acontecer, o meu medo será então real e a minha preocupação desmedida. Até lá, prefiro concentrar os meus receios em países como a Espanha, a França, a Suíça e a Rússia e aos seus governantes preconceituosos e tão perigosos – porque já conseguiram pôr em práctica os seus preconceitos – como qualquer ideologia fascista, nacionalista ou nazi.

E até posso estar terrivelmente enganado, mas continuo a acreditar que o povo terá sempre a última palavra na democracia das coisas, o que me descansa, de alguma forma. Como teve, goste-se ou não, na Ucrânia. Porque, independentemente das forças políticas envolvidas na revolução de Kiev, o que sucedeu foi aquilo que muitas destas pessoas preocupadas com a extrema-direita tantas vezes defendem nas mesmas redes sociais: o povo saiu à rua e fez ouvir a sua voz. O problema é que, muito provavelmente, a orientação política deste povo não é do agrado de muitos e percebe-se porquê. Mas é esta a magia da democracia, não é? E a democracia cumpriu o seu papel na Ucrânia, a nós, agora, só nos resta amanharmo-nos com o resultado.

E se o povo for realmente um observador atento e sempre pronto a intervir, então talvez estes receios de políticas extremistas possam ser permanentemente um nado morto. Foi Lenine quem disse nós somos utopistas e não negamos de forma alguma que sejam possíveis e inevitáveis excessos individuais [dos governantes]; não negamos tão-pouco que seja necessário reprimir esses excessos. Mas primeiramente não é preciso para isso uma máquina especial, um aparelho especial de repressão. O povo armado se encarregará ele próprio dessa tarefa tão simplesmente, tão facilmente como qualquer multidão de homens civilizados, mesmo na sociedade actual, separa pessoas que se batem ou não permitem que maltratem uma mulher. E eu quero continuar a acreditar nisto. E se for pelo voto pois que assim seja. Se não, pela pedra. Como em Kiev.