O VOTO E A PEDRA
E de repente o mundo das redes sociais acordou para o perigo
do nacionalismo, do fascismo e do neonazismo. Por força dos que se tem passado
na Ucrânia, vários são os que têm vindo para as páginas do universo digital
preocupados com o que vai ser do mundo assim que estes movimentos assumam o
poder. Para reforçar a sua consternação publicam ensaios, teses e teorias – da conspiração,
muitas delas – acerca dos perigos do ressurgimento de tais forças no seio da
Europa. Destes, alguns apoiaram a revolta de Kiev até que ficaram a saber,
pasme-se!, que na Ucrânia também existem movimentos de extrema-direita.
Existem na Ucrânia como existem, há já alguns anos, em
outros países da Europa de Leste. E bastante activos, diga-se. Como existem na
Rússia, na Polónia, na Hungria e, em boa verdade, como existem no resto do
continente, mesmo que mais ténues e pouco impressionantes. Como existem
políticas de extrema-direita em governos como o da França, Espanha e, mais
recentemente, da Suiça. Por opção ou por desconhecimento estes activistas das
redes sociais acreditam que estes movimentos e partidos são financiados pela UE
e pelos EUA, eternos interessados em desfazer quaisquer resíduos da antiga
União Soviética e assim continuar a conquistar aliados comerciais. Esquecem-se,
estes preocupados cidadãos, que um governo de extrema-direita dificilmente faria
quaisquer acordos de aliança económica quer com os EUA, quer com a EU.
E não é mentira, de facto. Americanos e europeus continuam,
hoje, a fazer tudo o que podem para desafiar o poder da Rússia, para deitar a
língua de fora ao governo de Putin e dizer roubámos
mais uma aldeia ao grande império enquanto se riem agarrados à pança capitalista.
Tudo isto é verdade. O que preocupa, no entanto, é que ao dirigirem a sua
atenção para estas teorias da conspiração se esquecem, ou ignoram, as
verdadeiras razões – ou pelo menos as mais importantes – por trás deste
crescimento da direita na Europa.
Porque também não é menos verdade que, em situações de grave
crise económica, torna-se muito mais simples passar ideias fascistas e de
extrema-direita a um povo que por força das dificuldades se torna mais
permeável à alternativa política. Mesmo que a alternativa política seja abjeta
e perigosamente odiável. Por falsos motivos financeiros, fica mais fácil
justificar o ódio pelos emigrantes, esses ladrões de empregos, e leis antiaborto,
esse sorvedouro de dinheiros públicos. Como se torna mais compreensível, por
falsas razões de defesa da dignidade humana, limitar as liberdades religiosas
aos muçulmanos, esses terroristas em potência e a quem não se pode confiar um
metro quadrado de espaço público.
Como também não é menos verdade que a esquerda europeia tem
sido totalmente ineficaz na conquista de credibilidade e que os sucessivos governos
de esquerda e centro-esquerda não se conseguem livrar de uma forte
responsabilidade na crise que atravessamos. Da mesma forma que não conseguem
oferecer uma alternativa válida aos milhões de europeus desiludidos com o andar
das coisas. Como não conseguem escolher líderes que motivem o povo, que se
façam ouvir, que mostrem que podem ser diferentes de todo o lixo político que
todos os dias aparece na televisão para falar aos cidadãos. Que não são mais um,
igual a todos os outros que vieram antes.
E sim, a extrema-direita é sempre um perigo à espreita, hoje
mais do que há uns anos. E sim, está a ganhar força, está a crescer e a
conquistar cada vez mais seguidores. Mas o medo que tenho da extrema-direita é
um medo quase irracional, quase sem razão, em parte porque não acredito ou não
consigo acreditar, que os grandes horrores com que o fascismo e o nazismo marcaram
a história da humanidade, possam voltar a acontecer num mundo aberto e hoje
sempre exposto aos olhares de todos. E até posso ser ingénuo. E até podemos
voltar a observar esses horrores em países ditos civilizados. A acontecer, o
meu medo será então real e a minha preocupação desmedida. Até lá, prefiro
concentrar os meus receios em países como a Espanha, a França, a Suíça e a
Rússia e aos seus governantes preconceituosos e tão perigosos – porque já
conseguiram pôr em práctica os seus preconceitos – como qualquer ideologia
fascista, nacionalista ou nazi.
E até posso estar terrivelmente enganado, mas continuo a acreditar
que o povo terá sempre a última palavra na democracia das coisas, o que me
descansa, de alguma forma. Como teve, goste-se ou não, na Ucrânia. Porque, independentemente
das forças políticas envolvidas na revolução de Kiev, o que sucedeu foi aquilo
que muitas destas pessoas preocupadas com a extrema-direita tantas vezes
defendem nas mesmas redes sociais: o povo saiu à rua e fez ouvir a sua voz. O problema
é que, muito provavelmente, a orientação política deste povo não é do agrado de
muitos e percebe-se porquê. Mas é esta a magia da democracia, não é? E a
democracia cumpriu o seu papel na Ucrânia, a nós, agora, só nos resta
amanharmo-nos com o resultado.
E se o povo for realmente um observador atento e sempre
pronto a intervir, então talvez estes receios de políticas extremistas possam
ser permanentemente um nado morto. Foi Lenine quem disse nós somos utopistas e não negamos de forma alguma que sejam possíveis e
inevitáveis excessos individuais [dos governantes]; não negamos tão-pouco que seja necessário reprimir esses excessos. Mas
primeiramente não é preciso para isso uma máquina especial, um aparelho
especial de repressão. O povo armado se encarregará ele próprio dessa tarefa
tão simplesmente, tão facilmente como qualquer multidão de homens civilizados,
mesmo na sociedade actual, separa pessoas que se batem ou não permitem que
maltratem uma mulher. E eu quero continuar a acreditar nisto. E se for pelo
voto pois que assim seja. Se não, pela pedra. Como em Kiev.
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