A ESTUPIDEZ ACADÉMICA
Esta crónica não é sobre praxes. Esta crónica também não é
sobre os seis do Meco. Esta crónica não é de todo sobre a histeria mediática em
torno das praxes e dos seis do Meco. Esta crónica é sobre a estupidez. Assim,
simplesmente.
Só acredita quem quer que a morte dos seis estudantes às
mãos do mar do Meco se deveu a um ritual de praxe mal calculado e a uma dose de
azar acima de uma escala à sorte. Só acredita quem quer porque as evidências
chegam para perceber que estudantes trajados dificilmente estariam a ser
praxados por colegas hierarquicamente superiores – hierarquia essa a que
voltarei mais tarde. Mas que os estudantes trajados estavam no Meco com o
propósito de um cerimonial directamente ligado ao espírito académico, disso só
duvida quem quiser. Não custa perceber, na verdade, que tudo passaria por ser
um ritual de subida de nível, de entrada num círculo ainda mais restrito na
cadeia de comando; tudo seria, muito provavelmente, um teste, uma prova, um
exame nada académico e acima de tudo muito pouco inteligente, a brincar aos marines numa praia na madrugada fria de
um Inverno chuvoso, tal e qual os filmes, romantizado o suficiente para parecer
ser ainda mais importante, ainda mais honroso, ainda mais dramático. O mar
fez-lhes a vontade.
E portanto, a praxe para este desastre não foi chamada. Para
este não foi. Já o foi para outros, alguns com desfechos igualmente dramáticos,
outros nem por isso mas de outra forma, e por outros motivos, graves. Estes seis
morreram não por causa de uma praxe mas por causa do mesmo espírito académico
que justifica a existência dessas actividades de integração, boas-vindas,
aprendizagem e educação – palavras não minhas mas de dementes que, como os seis
do Meco, acreditam na causa académica ao ponto de brincarem com a sorte como se
se quisessem oferecer ao mar em sacrifício. O mesmo espírito que impõe sem
forçar um silêncio em forma de pacto, que cria traços de seita, de culto, em
miúdos que mal têm idade para apertarem sozinhos os cordões dos sapatos e que acham
que conhecem o conceito de bando porque leram os livros da série Uma Aventura…
A praxe no Meco não teve culpas. A culpa foi única e
simplesmente dos que morreram e do que se salvou, sabe-se lá porquê, sabe-se lá
como. Foi culpa deles porque a culpa de quem acredita nas baboseiras académicas
e se submete às praxes, aos rituais de humilhação mais ou menos públicos e, lá
está, ao espírito académico, é exclusivamente sua.
O espírito académico é a demonstração mais irracional –
porque me recuso a acreditar que seja consciente – da estupidez humana. Uma estupidez
que fica em cada um anos após o fim da vida universitária, como tem sido
comprovado pela torrente de alarvidades que têm vindo a público na forma de
indignação de quem foi praxado e sobreviveu. De quem defende a praxe, de quem
acredita piamente que esta tem o objectivo nobre e elevado de integrar todos os
que passam por ela; de os ensinar a ser mais adultos, mais importantes,
melhores do que os outros, os selvagens, ou medricas, ou meninos da mamã que
lhe fugiram e quiseram ser diferentes. A praxe não serve coisa nenhuma. não tem nenhum outro objectivo que não o do pretexto. Pretexto para o autoritarismo, pretexto para o exercício de um poder que não se teria de qualquer outra forma, pretexto para sentir a adrenalina da autoridade repressiva e violenta, pretexto para a farra, para a bebedeira até desmaiar – que é, ela própria, um pretexto para mais um chorrilho de bestialidades diversas – e um belo pretexto para se ser integrado numa hierarquia, com promoções e subidas na carreira, como provavelmente não se volta a ter na vida. Uma hierarquia que só existe na mente iludida de quem acredita numa ilusão fraquinha, num mau truque de mágico de feira, e cuja fragilidade só sobrevive graças à fé cega de quem não tem inteligência para relativizar mesmo as mais básicas dúvidas.
Na verdade, os boçais académicos que escolhem passar pelo
ritual de praxe, só o fazem para serem legitimamente os herdeiros do ritual do
ano seguinte. Se fazem o que fazem, se suportam o que suportam, é para poderem
ser eles os responsáveis pela tortura dos que se seguirem, preferencialmente, e
porque já terão aprendido como se faz, com ainda mais arrogância e autoridade,
com requintes de maior malvadez e agressividade. Com maior prazer sádico.
A estupidez académica faz acreditar cegamente na praxe. Faz acreditar
que é boa para os recém-chegados alunos, que os ajuda, que os faz crescer, ser
mais adultos, mais responsáveis, e isso significa, por exemplo, assinar
cegamente um pacto de silêncio de meninos empoleirados numa casa na árvore a
dispararem fisgas aos pássaros pousados nos ramos. A estupidez académica não
tem limites, durante ou após a vida de estudante. E é uma estupidez tão grave,
tão profundamente enraizada nos cérebros dos estúpidos académicos, que os tolda
e os torna inconscientemente ignorantes da própria história da tradição que tão
ferozmente defendem. Cegos pela força da lavagem cerebral, estes brutos
acreditam que a praxe é uma tradição secular, que sempre foi assim, que é algo
cujo peso histórico justifica que se lute contra os bárbaros que lhe querem um
fim. Estupidificados pela promessa de um Olimpo universitário pleno de prazeres
carnais e regado a hidromel, estes energúmenos perdem todo o discernimento e a
capacidade de perceber que mentem a cada palavra que vomitam; que não são mais
do que fedelhos a brincar aos generais, bandos de cães abandonados que queriam
a pinta de se ser lobo e que estão constantemente a um passo bem curto, tamanho
36, de se fecharem numa quinta, encherem os copos de leite e veneno, trocarem
uns quantos tiros com a polícia local e encerrarem a festa com um belo
incêndio.
É esta estupidez que faz salivar os órgãos de comunicação
social, já de si peritos em ser-se estúpido. Fá-los salivar da mesma forma que
mais uma notícia de um cão que atacou alguém, da Miss Mundo que se espalhou ao
comprido na passerelle, do futebolista que rasgou os calções e nos brindou com
uma olá sorridente do seu par de testículos não depilados ou da apresentadora
de televisão que de tanto se rir largou um sonoro e sempre hilariante gás
intestinal. É a mesma estupidez que nos presenteia com directos consecutivos em
torno de um autocarro que caiu de uma ponte, dos bombeiros a desmaiarem em cima
das chamas de Verão e do funeral do Eusébio. Para os órgãos de comunicação
social a importância de tudo isto é a mesma. É dinheiro a entrar pela porta. São
milhares de olhos colados ao papel ou ao vidro, sedentos de sangue que lhes
alimente a estupidez. E é a mesma estupidez.
Quanto aos boçais académicos? Não tenho pena deles. Não tenho
pena dos que rastejam, dos que passam horas de joelhos, dos que são insultados,
espancados, metidos em merda até à boca, dos que vão para casa a cheirar a mijo
e lixo e não tenho pena das que são violadas em coma alcoólico. Como não tenho
pena dos seis do Meco. Porque tudo isto é o espírito académico que eles abraçam
no primeiro dia de aulas. É isto que tão ardentemente desejam e é com tudo isto
que sonham naquelas semanas que antecedem o início da sua vida universitária.
Tenho pena, isso sim, dos que ficam à beira-mar a pensar no
que tudo poderia ter sido, e em como foram facilmente convencidos pela baba do
orgulho de que tudo isto era bom para os filhos, de que a vida académica era
mesmo assim e em como nem sabiam de metade do que ali se passava e em como era
bom saber o que aconteceu naquela praia. Em como era mesmo bom saber o que
aconteceu naquela praia, e o motivo que os levou ali e porque é que estavam tão
perto do mar de Inverno que nunca é de confiar. E em como nunca se vão
convencer de que os seus filhos eram estúpidos e de que foi a estupidez
académica a que muitos chamam de espírito académico a responsável por terem ido
morrer a uma praia, numa madrugada fria de Inverno a muitos quilómetros de uma
sala de aulas.
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