O DIA SEGUINTE
Quem me é próximo tem reclamado pelo facto do meu blog e
estes textos que vou escrevendo servirem exclusivamente para eu destilar o fel
que me apoquenta. Com razão, diga-se. Mas a verdade é que me é mais fácil ser
ácido e é-me mais fácil alimentar a vontade de escrever e a prática da escrita
com as coisas que me irritam ou me tiram do sério.
Pois bem, não querendo desiludir as expectativas de quem me
conhece, cá vai mais uma crónica de maledicência, esta, dedicada aos que dizem
mal dos outros e do que aos outros importa – como eu, de resto.
O dia seguinte a um jogo da selecção portuguesa de futebol
é, regra geral, o dia em que algumas pessoas aproveitam para sair da sua gruta
e assumir publicamente o quanto esse acontecimento desportivo lhes é tão
repugnante. Chocam-se com o que os seus concidadãos sofrem, com o grau de
entusiasmo que demonstram e com o mediatismo do acontecimento desportivo. Gozam,
até, com aqueles que por ser dia de selecção se esquecem de como o mundo vai
mal e de como somos todos miseráveis e da troika e do Passos. Gozam, na
verdade, com um momento que serve para isso mesmo, para nos esquecermos de como
o mundo vai mal e de como somos todos miseráveis e da troika e do Passos. Um momento,
como tantos outros, cuja utilidade é unicamente a de nos sentirmos um bocadinho
distraídos de tudo o que interessa, é verdade, mas que também nos consome e
corrói e nos dá dores de cabeça. Por isso mesmo a estes momentos se decidiu chamar
de entretenimento – que, segundo o dicionário, significa acto de entreter; coisa que entretém; brincadeira; distracção;
divertimento; entretimento.
E momentos como estes há muitos e para muitos gostos. Há quem
se distraia com a cerimónia de entrega dos Óscares; há quem se entretenha com o
festival da canção; há quem passe um bom bocado a fazer belos gorros em ponto ripple, toalhas de mesa em ponto cruz e
pudins em ponto de caramelo. É, no entanto, inconcebível que outras pessoas
tirem um peso de cima dos ombros e todas as preocupações da cabeça durante hora
e meia enquanto gritam golo em frente a uma televisão. Isto é inconcebível.
E é inconcebível porque, não sei quando nem como ou porquê,
de há uns anos a esta parte é giro dizer mal do futebol e de quem lhe é adepto.
Subitamente o futebol transformou-se na coisa nada nobre, digna dos maiores borjeços,
desporto de bárbaros sem modos, pouco requintado, pouco bonito, pouco na moda e
nada inteligente. É burro, aquele que vibra com um jogo de futebol. É irresponsável,
aquele que por hora e meia se esquece da dívida de Portugal. É desinteressado,
aquele que em noventa minutos não pensa uma vez que seja no festival da canção,
nos bordados da esposa ou nas receitas da mãe.
Por outro lado, parece bem falar mal de futebol e de quem o
assiste. É uma trend, é cool, é intelectualmente superior, é esquisito.
Pode louvar-se as conquistas pessoais de outros atletas de outros desportos,
tenistas, basquetebolistas, nadadores e ciclistas, mas falar do Ronaldo, bem,
falar do Ronaldo é parolo, é portuguesinho, é assunto que só pode existir nas
bocas que ruidosamente sorvem vinho rasca nas tascas reles.
Por isso mesmo, no dia seguinte a um jogo da selecção
portuguesa de futebol, é comum ver estes génios superiores atirarem ataques a
quem viu, sofreu e torceu pela equipa das quinas. Fazem do escárnio uma das
armas preferidas e rebaixam todos os que compram os jornais do dia seguinte só
para saberem mais do que já sabiam: como foi o jogo, quem jogou melhor, que
notas deram a cada um dos jogadores, como se portou o árbitro e se esteve frio
no estádio.
Mais perigosas que o escárnio e a maledicência desta gente,
com argumentos que não ultrapassam o gozo infantil de quem se julga mais forte,
são as acusações de nacional desinteresse, nacional irresponsabilidade e
nacional quero cá saber que
facilmente se jogam às caras de quem puxou por Ronaldo e os restantes: que
deviam mostrar semelhante entusiasmo pelos problemas do país, que deviam gritar
nas ruas contra o Governo como gritam em casa e nos cafés pela selecção e que
deviam querer resolver os nossos problemas com a mesma força com que querem ver
Portugal no campeonato do mundo de futebol. E isto é perigoso e, no mínimo, um
golpe baixo.
Porque sim, é verdade, os portugueses deviam ser mais
entusiasmados com mais coisas para além do futebol. Deviam ser entusiasmados
com a literatura, o cinema, o teatro e a arte em geral; deviam ser mais
entusiasmados com os direitos humanos, os direitos dos trabalhadores, os
direitos dos animais, a ecologia e o ambiente. Deviam, sim senhor. Mas não são
e não é com certeza por causa do futebol. O futebol é, aqui como em todo o
mundo, um entretenimento que se leva pouco longe, longe ou longe de mais, mas que
é só um entretenimento. Os desditosos que se dedicam a fazer pouco de quem se
interessa pelo futebol e que vê na hora e meia que leva um jogo uma hipótese de
se sentir bem, não perceberam que é destas coisas que um país precisa. Portugal
e os portugueses não têm muitas. Por desinteresse, é verdade. Mas isso não
significa que se menospreze as poucas que existem e que servem para, mesmo que
de uma forma fútil, tirarmos os pés da lama e andarmos, nem que por um dia – o
dia seguinte –, de cabeça bem erguida.
E são estes os portugueses mesquinhos que nos colaram a
todos à fama triste do fado. São estes os portugueses que são tristes porque
querem. Que são mesquinhos porque querem. E que são azedos porque gostam.
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