A SEIVA TRUPE E OS COIOTES
Um despejo é sempre violento. Um despejo é sempre uma coisa
que não queremos ver, com cujos métodos não concordamos. Um despejo é sempre um
momento de agonia antecedido por dias de angústia e em que tudo se passa
demasiado rápido: hoje ficamos a saber que podemos ficar sem casa, amanhã
dizem-nos que vamos mesmo ficar sem casa e num ápice estamos fechados do lado
errado da porta. É duro, sempre.
Muito se tem escrito e muito se vai escrever ainda sobre o
despejo de que foi alvo a Seiva Trupe. Longe ainda de sabermos se o assunto
está resolvido e sem remédio ou se a coisa se vai ficar por um básico golpe de
teatro, temos assistido a um verdadeiro festival de repúdio público por uma
decisão e consequente acção (lá está) violentas. Nada disto me aborrece.
Aborrece-me, como me aborrece sempre, a violência e a frieza do despejo em si. Mas
aborrece-me tremendamente mais a hipocrisia e ignorância dos que rapidamente
vieram a público vociferar palavrões mais ou menos caros contra o executante de
tão ignóbil acto.
Não que os palavrões mais ou menos caros contra o executante
de tão ignóbil acto me aborreçam. Eu próprio não nutro qualquer simpatia ou
respeito pelo executante. Como não nutro qualquer simpatia ou respeito pelos
que hoje sofrem com a execução. E é nessa posição (espero eu) isenta, que me
ponho a pensar nisto tudo e que percebo a hipocrisia de tudo isto.
A totalidade das pessoas que publicamente já se manifestaram
contra a decisão do executivo camarário de despejar a Seiva Trupe, só o faz,
não porque de um lado da questão esteja a companhia de teatro – qualquer
companhia de teatro – mas sim porque do outro lado está um tal de senhor Rui
Rio, que nunca fez por ser popular junto das gentes da cultura e das artes da
invicta. De facto, se há herança que Rui Rio deixa, agora que está de saída, é
a do ódio profundo pelo seu executivo e pelo seu desempenho. E fosse outro o
presidente a assinar a ordem de despejo e tudo seria bem diferente e teríamos
menos pessoas interessadas em publicamente demonstrar fosse o que fosse.
Mas Rui Rio sempre se pôs a jeito e por se ter posto a jeito
é que não tem quaisquer hipóteses de convencer seja quem for de que está a
seguir a lei e a tratar a Seiva Trupe como se trata qualquer indivíduo que
falhe com as suas obrigações contratuais. O povo vai sempre dizer que isto não
é mais do que uma vingança, que são pessoais os motivos que o levam a fazer
isto e que é um calhorda sem escrúpulos ou vergonha na cara. E muito bem, eu
próprio acredito em tudo isto, afinal os senhores que mandam na Seiva Trupe até
foram apoiantes assumidos da candidatura de Luís Filipe Menezes. Ainda assim,
estaremos sempre a especular. A decisão está baseada em princípios legais com
que todos concordamos, mesmo não sendo senhorios ou proprietários seja do que
for.
E, portanto, nada disto me aborrece. Aborrece-me e muito que
por motivos também eles pessoais – leia-se «ódio por Rui Rio» – certas pessoas
que desde sempre criticaram a forma como o Campo Alegre é gerido e em especial
o comportamento de proprietário do edifício que a Seiva Trupe assumiu, venham
agora chorar lágrimas de sangue pela vetusta companhia. Aborrece-me que num
repente tudo o que sempre se disse em conversas de café, boca pequena e
sussurro afiado, faça parte de um passado que nunca existiu para se poder
destilar mais um bocadinho de fígado azedo.
Não me aborrece que tudo isto seja contra o senhor Rui Rio. Como
diz o povo, só se perdem as que caiem no chão. Aborrece-me a hipocrisia. Aborrece-me
que para além destas, existam outras pessoas que nunca sentaram o cu nas
cadeiras do Campo Alegre e que nunca tenham sequer visto um espectáculo da
Seiva Trupe venham agora manifestar o nojo que o que sucedeu lhes provoca. Que falem,
como se tivessem conhecimento de causa, do prestígio único de que a companhia
goza. Sem saberem que isso já não é verdade há um bom punhado de anos. Que digam
coisas do género «o teatro foi construído para a Seiva Trupe» sem saberem ou
quererem saber que isso nunca foi verdade. Sem saberem que o Campo Alegre
resulta de uma parceria com interesses diferentes, que para um dos parceiros, a
Reitoria da Universidade do Porto, a ideia era fazer do Campo Alegre a nossa
Aula Magna. Sem saberem nada disto, lançam impropérios, tiram conclusões e
fazem afirmações, tudo em nome de um ódio partidário ou não partidário. Não por
se preocuparem com a Seiva Trupe, nada disso.
Estas pessoas também não sabem o que realmente se passa com
o Campo Alegre. Soubessem elas o que se passa por lá e talvez a eterna
discussão em torno do Rivoli não fosse só sobre o Rivoli. Porque estas pessoas
nunca se deram ao trabalho de se questionarem relativamente ao porquê de não
haver actividade significativa numa sala que, verdade seja dita, é bem melhor e
mais equipada que o Rivoli. Nunca quiseram saber porque a Câmara não quer saber
de programação cultural no Campo Alegre, como também nunca quiseram saber
porque razão a Reitoria não fez daquilo a Aula Magna que tanto queria e que
tanta falta fazia ao Porto. Querem saber, como se isso fizesse alguma
diferença, que esta foi mais uma decisão de um certo Rui Rio que lhes destruiu a
cultura que eles não vão ver.
O problema aqui não é o despejo da Seiva Trupe, embora isso
para a companhia seja um problema letal. O problema aqui, como sempre, é com
aqueles que por uma razão ou outra – acima referidas – metem a boca no mundo
para dizer um chorrilho de disparates, ora hipócritas, ora desinformados ou
parcos em argumentação.
Não tenha nada contra a Seiva Trupe e desejo firmemente que
consigam resolver esta questão. Como desejo ainda mais que revejam a política
do quero, posso e mando com que têm abordado a sua residência no Campo Alegre. Desejo
que deixem de uma vez por todas de se comportarem como proprietários do edifício,
atitude arrogante que ainda ontem fizeram questão de perpetuar, convocando uma
conferência de imprensa sabendo que no mesmo local e à mesma hora estava
programado um espectáculo de teatro.
Mas nada disto interessa a quem quer mandar vir, seja qual
for a razão. O que interessa é reclamar, gritar e ameaçar. Interessa colocar
pressão sobre o próximo presidente da autarquia como quem coloca pressão sobre
o árbitro do próximo Benfica – Porto. Isso é que é de valor, é de homem, é
assim que um cidadão se deve comportar.
E há duas coisas que convinha não esquecer. Uma delas de
pouca importância e que serve só para cimentar um recorde absoluto para
qualquer presidente de câmara: Rui Rio, a poucos dias de se retirar do poleiro,
assina mais uma decisão que nunca será perdoada pelos portuenses. Mais uma de
todas as que compõem o tal recorde de impopularidade. A outra, é que muitos dos
que têm vindo a público chorar com a Seiva Trupe, não tarda vão trocar de fluidos
e salivar como coiotes pelo espaço desocupado, desde sempre tão desejado e
inalcançável.
Tudo isto é triste, tudo isto é hipócrita. E lembro-me de
que há pouco mais de um ano, um grupo de teatro do Porto bem mais interessante
que a Seiva Trupe foi obrigado a abandonar o espaço que ocupava desde sempre
por não o poder pagar e de não ter havido grandes manifestações de choque e
solidariedade. Se tudo tivesse acontecido por uma decisão camarária tinha caído
o Carmo e a Trindade e tínhamos rios de bílis a correr pelas páginas da
comunicação social e pelas redes sociais. Como não foi, não houve cheiro a
sangue e não houve gosto em criticar. Os coiotes não tiveram carcaça para
morder. Mas agora têm e vão ter uma a cada dia de desenvolvimento desta
polémica. Não tarda nada e temos o Abrunhosa agrafado às portas do Campo
Alegre.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home