QUASE JORNALISMO
Já há muito que a andava a desesperar com a qualidade do nosso
jornalismo, nomeadamente com a qualidade da escrita e com as inúmeras gralhas e
erros gramaticais impressos nos jornais portugueses. Hoje foi a gota de água. O
título de uma notícia do Jornal de Notícias informa-nos de que o Estado
Islâmico já matou quase 1500 pessoas. E muito bem. Muito bem, a escrita do
título, português imaculado, informação correctamente transmitida, não muito
bem o EI ter assassinado quase 1500 pessoas, isso é errado. A notícia, no
entanto, arranca logo com uma daquelas caneladas com direito a cartão amarelo a
fugir para o alaranjado ao informar-nos de que afinal o EI já matou quase 1429
pessoas.
Ora bem, não se matam quase 1429 pessoas. É impossível matar
quase 1429 pessoas, por muito que uma ou outra fiquem mais mortas do que vivas,
não se matam quase 1429 pessoas por
muito que se percam as esperanças na saúde de um ou outro que sobreviveu, não
se matam quase 1429 pessoas a não ser que se tenham matado 1428, e isso de
facto são quase 1429 infelizes que viram as suas vidinhas a andar para trás às
mãos dos radicais islâmicos.
Contudo, há uma regra qualquer que se aprende no curso do
jornalismo acerca de como utilizar estas expressões numéricas numa notícia. O arredondamento
aceita-se, por exemplo, no caso das quase
1500 pessoas – pese embora me pareça que 71 pessoas sejam demasiadas para se
poder arredondar os defuntos para 1500.
Não se aceita, nem se justifica de maneira nenhuma, quando se utiliza um número
certo. 1429 pessoas é um número certíssimo e que dispensa, portanto, o uso da
palavra quase, porque… já perceberam,
não já?
Erros destes e piores são norma no jornalismo escrito que
nos vem parar às mãos diariamente. É mau o português, é deficiente o uso da
linguagem e das regras gramaticais, são mal escritas as notícias, os artigos de
opinião e as crónicas, que perderam redatores de peso para ganharem famosos que
sabem suficientemente escrever em português. Que deve ser mais ou menos a única
exigência também para se ser revisor em Portugal. É português? Está contratado, não se fala mais nisso. Embora eu
acredite, na verdade e infelizmente, que os revisores na imprensa escrita são
uma espécie em vias rápidas de extinção. O que será grave.
E é ainda pior do que parece. Num país em que há quem
acredite que os pinguins vivem na Amazónia, que a primeira letra da palavra
Hugo é a letra grande e em que
ministros aparentemente compram os seus cursos superiores, seria mesmo
importante ter uma imprensa que informe mas também que ensine a ler. A ler em
português correcto. E isso começa na formação, como não podia deixar de ser. Ensinar
um futuro jornalista a escrever é da mais fundamental relevância. Ensinar-lhe
as regras jornalísticas também, claro, mas de que nos servem as regras se não
perceberem o que estão a querer dizer? Se perceberem quase o que querem dizer,
se souberem quase como o querem fazer?
Um quase jornalismo é tanto jornalismo como uma quase
medicina é medicina ou como um quase engenheiro é engenheiro de facto. E não
basta um diploma para se ser profissional seja do que for. A bagagem deve ser
maior e mais completa e complementar e deve ser transmissível a quem quizer
aprender. Neste caso, o jornalismo informa quem quer ser informado. Fazê-lo
correctamente, sem quases, é absolutamente imperativo.
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