A INDÚSTRIA DO ESPECTÁCULO
Não gosto de José Sócrates. Não gosto hoje como nunca
gostei. Não o respeito, não o admiro e desconfio dele como desconfiarei sempre
de qualquer indivíduo com um cargo político ou uma posição numa qualquer esfera
de poder. Assumo essa desconfiança sem pruridos. Nada me daria mais prazer do
que ver Sócrates ou qualquer outro político cair de joelhos perante uma
acusação de fraude ou corrupção – as desconfianças de que habitualmente padeço
relativamente a esta classe profissional. No entanto, e sem grande esforço, no
que poderá até parecer contraditório à minha vontade de ver os políticos
arderem num inferno impiedoso, aguento a sede e espero. Espero por um julgamento,
se o caso Sócrates chegar a tal. Espero por algo que também suscita numa grande
fatia do povo português forte suspeita. Espero que se faça justiça, não a
justiça popular, mas a justiça judicial, nos tribunais, como deve ser.
A justiça popular, hoje, no caso Sócrates, como antes, em
tantos outros casos, já foi feita e não pelos populares. A justiça popular em
Portugal faz-se pelos órgãos de comunicação que, cansados de servirem os bolsos
de que os detém, passaram a servir outros interesses que indirectamente servem
os interesses de quem detém os órgãos de comunicação. É um complicado
ecossistema, na verdade, e um em que todos comem e poucos são comidos. Se são
comidos é porque fizeram alguma coisa errada como, por exemplo, não levar a
papinha à mão de quem lhes dá de comer.
Hoje, como em tantas vezes no passado, os jornais, as televisões,
as rádios e os sites e redes sociais regozijaram-se com a captura de uma figura
pública muito pouco querida. Espumaram baba e sangue porque um odioso
ex-primeiro ministro com um cadastro de suspeitas infindável e vil foi detido
pelas autoridades. Não se limitaram a fazer disso notícia – e notícia
apetitosa, compreensivelmente – e fizeram um espectáculo, o espectáculo que
costumam fazer e que é um espectáculo digno das melhores produções blockbuster
dos states e em que só faltam os ecrãs verdes e os fantásticos efeitos CGI.
A ocasião faz o ladrão, e no caso da comunicação social a
ocasião faz algo bem pior do que um ladrão; a comunicação social portuguesa (e
não só) é uma espécie de Hulk: a maior parte do tempo é um aborrecimento de
morte, mas assim que o cheiro a sangue invade redacções é ver os jornalistas
arrebitados, loucos, cegos, a correrem para os locais de reportagem – os reais
e os outros – como se ganhassem nova vida, como se fossem outras pessoas, como
se fossem um filme a preto e branco até ao momento em que algo verdadeiramente
escandaloso acontece e como uma Dorothy ficassem subitamente em versão
technicolor.
A justiça popular, no caso Sócrates está feita e bem feita. Porque
desta justiça popular já José Sócrates nunca mais se livra. E a esse respeito
convém-me dizer que não me choca a justiça popular que é feita nas mesas de
café, nos bancos de jardim, nos escritórios entre colegas e nos balneários no
fim do jogo de fim de tarde. Choca-me, revolta-me, que essa justiça popular
seja primeiramente feita pela imprensa. Preocupa-me que seja a imprensa nas
próximas não sei quantas semanas a alimentar a justiça popular até ao ponto em que
esta se torna numa coisa insana, sem limites, sem pudor.
Hoje, na sua página de Facebook, uma jornalista do Correio
da Manhã publicou a primeira página do jornal em que trabalha acompanhada por
uma legenda da sua autoria em que se pode ler «Uma capa histórica num dia
histórico». Não tenho dúvidas, o dia histórico não é histórico porque o
Sporting deu cinco ao Espinho no jogo da Taça de Portugal. E basta olhar para
essa primeira página e para o infeliz comentário da jornalista para perceber tudo o que se passa no jornalismo português: algo que
já há muito deixou de ser jornalismo para passar a ser uma indústria de efeitos
especiais, uns merecedores do Oscar, outros nem por isso.
Portanto preparem-se, os próximos meses vão ser tempos de
jornalismo reprovável, despudorado, inventado, vingativo e espectacular. Cultura
para as massas? Nada disso. Informação em jeito de serviço público? Nem pensar.
Showbiz para as hordas de espectadores ululantes? Pois com certeza, que é isso
que alimenta o ecossistema e põe o pão na mesa.
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