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Bom Karma... ou não!

sexta-feira, junho 15, 2012

ACERCA DA CULTURA: O TEATRO EM PORTUGAL

Numa altura em que as dificuldades dos agentes culturais estão para ficar ainda mais pesadas, muito podia aqui discorrer acerca de tudo o que se apresenta como condicionantes da produção cultural em Portugal: a falta de sensibilidade, apoio, conhecimento e cultura dos sucessivos governos; a falta de educação cultural de todo um povo; a falta de ânimo e força de quem quer ser artista num país impróprio para o serviço.


É isto que os ditos agentes culturais passam a vida a fazer. A atacar os alvos fáceis, evidentes e apetecivelmente mediatizados, sem, no entanto, falarem das culpas próprias. E são muitas. E têm de ser tão discutidas quanto todas as outras. E eu teria muito para falar das culpas dos governos. Sinceramente? Estou farto disso. Do caminho mais fácil.


O Bloco de Esquerda tem sido o partido mais apostado em revolucionar a situação cultural do país. São propostas, debates e manifestos, todos com o mesmo objectivo, ou seja, facilitar a produção e programação artísticas e culturais e, ao mesmo tempo, fazê-las chegar mais facilmente às populações. Claramente o Bloco de Esquerda não vai ao teatro. Ou se vai não paga bilhete.


Só a título de exemplo: o espectáculo que actualmente está em cena no Teatro Carlos Alberto, e que resulta de uma parceria com o Teatro Nacional São João (TNSJ), tem um preço de entrada de, nada mais, nada menos, 16 euros. E a pergunta é muito simples: quem paga este valor para ir ao teatro? Muito pouca gente. Quase ninguém. Por isso mesmo é habitual ver uma sala cheia na estreia de um espectáculo e em seguida sessões canceladas por falta de público.


A aritmética é bastante simples e funciona para o teatro profissional como para o teatro amador ou universitário. A bilheteira da carreira de um espectáculo estará sempre longe do orçamento total para a execução desse mesmo espectáculo. Mesmo com casa cheia todos os dias. Porquê? Por várias razões. Porque há encenadores a receber dez mil euros por trabalho. Porque há desenhadores de luz que cobram 2500 euros por trabalho. Porque os directores das companhias de teatro retiram para si ordenados escandalosos. Porque os grupos e companhias que ainda recebem subsídio do Estado e os profissionais que vivem das artes do palco criaram um monstro que precisa ser alimentado. Os altos valores que se pagam no teatro - não a toda a gente, claro está - são um dos problemas de que não se fala. 

Outro dos problemas é a falta de união e de alguma solidariedade, até, entre profissionais do teatro. Por ocasião do dia mundial do teatro, em Março, assisti a uma tertúlia que reuniu a quase totalidade dos grupos e companhias de teatro do Porto, TNSJ inclusive. Pouco falaram os responsáveis pelo teatro que se faz no Porto dos problemas e das dificuldades da arte em si. Falaram muito do que fazem, de quanto público têm, das suas próprias dificulades e falaram e muito do governo e da política cultural. Ou seja, e como sempre, falaram muito do seu umbigo mas não do cotão que por lá acumulam. 

Repito o que tive a oportunidade de dizer nessa ocasião: as pessoas do teatro esqueceram-se de que também são - ou deveriam ser - público. Não se interessam pelo que a concorrência anda a fazer e vivem num castelo, desconfiados da vizinhança. Não apoiam nem colaboram com grupos mais «pequenos» e falam muito da importância dos grupos emergentes, amadores e universitários, mas olham para eles de esguelha, como se fossem menores ou menos importantes. Não são e vão ser fundamentais. Numa altura em que os profissionais já choram a morte dos seus projectos, estes grupos «pequenos» vão assumir uma importância vital na oferta cultural. Porquê? Porque não cobram 16 euros por bilhete.

O Teatro Universitário do Porto (TUP), feliz ou infelizmente, não depende, como os profissionais, dos subsídios da Secretaria de Estado da Cultura. O TUP não tem problemas de público e, como todos os outros, não paga os seus espectáculos com a bilheteira. Paga-os com o dinheiro que recebe da reitoria da universidade e com o apoio da Gulbenkian. Quer isto dizer que quando um espectáculo é levado a cena já está pago pelas entidades que nos apoiam. Tal e qual como os espectáculos profissionais. A bilheteira é meramente uma tentativa de ter mais uns trocos para outras actividades, projectos e acções de formação. Nada mais. Por isso mesmo o TUP não cobra 16, 14, 10 ou sequer 7,5 euros por bilhete. E é por isso mesmo que um espectáculo de fim de curso de iniciação à interpretação em dez dias de carreira tem oito dias de lotação esgotada. E é assim que se cria público, é assim que se conquistam novos candidatos ao TUP e, acima de tudo, é assim que fidelizam espectadores, algo com que definitivamente os profissionais não se preocupam. Mas queixam-se.

Queixam-se de barriga cheia. Cheia de maus hábitos, de vaidade injustificada, de soberba desmedida, de anos de vacas gordas mal aproveitadas. Vacas gordas que não deram em nada, nem reconhecimento, nem fama, nem qualidade, nem espectadores, nem confiança do público, constantemente desiludido com os espectáculos que são o espelho dessa mesma vaidade. Espectáculos feitos para o umbigo do encenador, distantes do público português e que quase se diria terem nos profissionais do ramo o seu único alvo. Mas nem esse vão ao teatro a não ser que recebam convites. E todos falam mal nas costas dos outros, e todos gozam com os espectáculos dos outros e todos desdenham os outros. Em comum, só têm o facto de serem uns valentes choramingas.

Manifestos como o do Bloco de Esquerda, são o reflexo da falta de conhecimento da realidade teatral no nosso país. São o resultado de quem ouviu os queixumes sem saber o que realmente se passa. De quem está programado para atacar o alvo mais evidente sem perceber ou querer perceber que as culpas são muitas - muito mais do que se imagina - e distribuídas por quem dá o dinheiro e por quem o utiliza. Que não percebe que os profissionais do teatro estão-se marimbando para o público e que na verdade não quer mais do que um advogado, um engenheiro, um professor ou um vendedor de meias na feira: ganhar o seu e o resto que se lixe. Ainda assim, há quem tenha a lata de dizer que o Teatro Nacional São João tem o papel de levar o teatro ao povo. A 16 euros por bilhete? Só se for ao povo da Alemanha.  


Não retiro qualquer prazer das dificuldades que a cultura atravessa. Tenho mesmo pena que Portugal seja um país em que, quando a crise aperta, seja a cultura a primeira a pagar a factura. Entendo - e sinceramente não percebo como os governos não o entendem - que a cultura pode ser uma máquina de produzir riqueza. Riqueza cultural e riqueza financeira. Mas recuso-me a embarcar nesta onda de hipocrisia dos que produzem teatro e de ignorância dos que querem fazer alguma coisa pela cultura portuguesa. Percebam, por exemplo, como é que uma companhia de teatro portuense geriu a sala que tinha ao seu dispor e vão entender um bocadinho do que realmente deveria estar a ser discutido.