Despejou a água a ferver na chávena, mergulhou o saco de chá, uma e outra vez e mexeu o liquido mesmo sem lhe ter colocado açucar. Ao contrário do café, que não conseguia de maneira nenhuma beber sem ser doce, o chá suportava-o assim, ocre, quase amargo. Tinha lido que a única maneira de se beber chá era sem açucar e sempre bastante quente. Era a opinião de um qualquer snob inglês, mas via-se obrigado a concordar.
Levou a chávena à boca e queimou-se imediatamente. E imediatamente se recordou daquela noite. Da noite em que, depois de ter feito amor com ela, se tinha proposto a ir até à cozinha, deixando-a enrolada na cama, no quarto, e a fazer chá para os dois. Era-lhe extremamente difícil afastar-se dela nem que por um segundo, mas por outro lado gostava muito da intimidade nascida da necessidade de falarem um com o outro através de uma fina parede.
Perguntava-lhe "que chá queres" e imaginava-a a olhar o tecto do quarto e a pensar nele com todo o amor do mundo. Ouvia "cidreira" e sorria ao pensar nela com todo o amor e carinho que sentia em si.
"Posso beber de Jasmim?" e via-lhe aquele enormes olhos bem abertos olhando para ele sempre que lhe susurrava o seu amor. "Podes, mas acho que está fora de prazo". E estava. Quase por dois anos. Mas bebia-o na mesma. Muio quente e sem açucar nenhum. O dela muito quente e com meia colher-de-chá de açucar.
Enquanto aquecia a água num velho e amarelado microondas, olhava lá para fora, através da janela da cozinha. Através dos telhados dos vizinhos, através dos gatos nos telhados dos vizinhos. Através das copas das altíssimas árvores, através do céu, iluminado por núvens de chuva miudinha, e viajava até ela. Sempre ela. Viajava de novo até à sua pele, macia como nunca tinha sentido outra, até ao seu cabelo, fininho como porcelana. Até à sua boca, pequenina e fresquinha, até ás suas mãos tão pequeninas e meigas.
Era o irritante microondas que constantemente o acordava do sonho, avisando-o de que a água estava pronta a ser transformada em chá. Nunca o avisava, contudo, de que estava pronta demais, e queimava-se sempre assim que metia a chávena à boca. Do lado de lá da parede ela ria-se, sempre que o ouvia a praguejar baixinho. Tinha o riso das crianças quando estão genuinamente felizes. E ele ria-se também ao ouvi-la, por acreditar que ela estava feliz.
Da segunda vez que tentou beber o chá já não se queimou. Reparou na etiqueta que pendia da chávena. Dizia Jasmim em letras estilizadas e bonitas. Olhou através da janela da cozinha mas já não existiam telhados dos vizinhos, nem gatos, nem as árvores, altíssimas. Não havia céu iluminado por núvens de chuva miudinha. Viajou até ela, no entanto. Tentou ouvi-la no quarto, mas ela não estava lá. Perguntou-lhe "que chá queres?" só para a sentir novamente.
Apertou a chávena nas mãos e bebeu mais um bocadinho.
1 Comments:
At 21:58, M. said…
Adoro a simplicidade e a genuína contemplação das pequenas coisas que este texto me transmite. ***
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