kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

terça-feira, agosto 29, 2006

Dia 27, no comboio de regresso ao Porto

As suas mãos ainda estavam sujas com tinta do jornal que tinha estado a ler quando pegou na maçã para a lavar. Só se apercebu disso quando reparou que a água que caía no fundo da pia era ligeiramente azulada. Podia perfeitamente ter pousado a maçã, lavado as mãos e recomeçado todo o processo do princípio, mas a preguiça levou a melhor.
Lavou uma segunda maçã. A água já não era tão azulada e ele sorriu como que aprovando a sua própria preguiça. Metodicamente descascou e partiu as maçãs, colocando as finas fatias num prato de plástico azul. O prato onde lhe costumava dar papinha de fruta esmagada com bolacha.
"Onde lhe costumava dar..."
Já há dois anos que não a via. A mãe tinha-a levado para longe dali. É melhor para ela, disse-lhe antes de bater a porta. Há dois anos que não a via. Falavam ao telefone alguns minutos, dia sim, dia não. Hoje era um dia não e ele queria mais do que tudo que fosse um dia sim. Afastou esse pensamento da cabeça e voltou a concentrar-se no prato de plástico azul e nas finas fatias de maçã.

Sentou-se na cadeira, na varanda. Eram já sete da tarde, mas deviam estar uns quarenta graus. Uns insuportáveis quarenta graus que derrotavam tudo e todos, até o vento que se fazia sentir.
Meteu a primeira fatia de maçã à boca e sentiu o sabor amargo da tinta de jornal na lingua. Sorriu como que reconhecendo a derrota da sua própria preguiça. À terceira fatia ouviu o primeiro grito. Era sempre assim. Sempre áquela hora, como um despertador. Sempre da mesma janela. O homem gritava sempre. Berrava-lhe palavras violentas e insultos. Ela nunca fazia barulho. Não emitia um único som. Apenas o ruído dos móveis de encontra aos quais era atirada. Da louça que se partia sob o corpo dela. A cena durava habitualmente entre cinco a quinze minutos e terminava sempre com o choro do homem. Um uivo arrepiante. Ela nunca fazia barulho.

Mas aquele dia havia de ser diferente. Naquele dia, antes de tudo terminar, antes do uivo do homem, antes até da última fatia de maçã, ela haveria de soltar um gemido. Um som abafado, quase inaudivel, mas que soaria como um grito incontido de dor.

A mão com a fina fatia de maçã deteve-se a meio caminho da boca. Parou de comer e esperou por mais ruído. Desejou que o processo habitual retomasse o seu percurso. Que voltassem os ruídos dos móveis a serem derrubados, da louça, partindo-se no chão sob o peso do corpo dela. Dos berros, dos insultos, e finalmente do choro dele, do uivo que a tudo punha um fim.
Mas aquele dia não haveria de acabar assim. Naquele dia, daquela janela, não haveria de sair nem mais um som, nem mais uma palavra. Naquele dia tudo haveria de acabar com um gemido abafado, quase inaudivel.

Por segundos pensou em tudo o que poderia ter acontecido. Todas as hipóteses. Sabia perfeitamente o que tinha sucedido. Com a mão e a mçã suspensas a meio caminho da boca e um forte aperto no estômago, pensou também em tudo que poderia fazer. Meteu a fatia de maçã à boca. E a seguinte, e a última. Levantou-se, pousou o prato de plástico azul na banca da cozinha e sem hesitar pegou na faca que repousava ainda numa pequena poça de água no fundo da pia.

Saiu de casa e atravessou corredores, escadas, portas e elevadores. O pátio que separava os dois prédios. E a única coisa em que pensava era nela. Sentada na cadeira, na varanda, os pezinhos sempre em movimento, enquanto lhe dava papinha de fruta esmagada com bolacha. Pensava em como ela era tudo na sua vida e em como seria horrivel se ela tivesse de passar por tamanha violência ás mãos de alguém assim. Imaginou-a a ser empurrada de encontra aos móveis, as suas mãozinhas partindo pratos e copos, o fio de sangue no cantinho da sua boca, as pisaduras mal escondidas por uns óculos de sol e pelas más desculpas do costume. "Uma porta", "umas escadas", "a banheira molhada".

O sangue corria mais rápido nas suas veias e os passos acompanhavam o ritmo acelerado do seu coração. Sem se dar sequer conta do caminho que tinha percorrido, subitamente estava parado á porta do apartamento deles. A camisa colada ao seu peito, o cabelo escorrendo suor, os pés descalços, a respiração descontrolada.
Ergeu o punho bem cerrado e bateu na porta. Um som abafado quase inaudivel. Bateu uma segunda vez, agora com mais força. Do apartamento não surgia um único sussurro. Nada. Nada que o retirasse daquele estado de quase-sonho. Bateu uma última vez, já sabendo qual seria o resultado. O silêncio. Absoluto, aterrador.

Minutos que pareciam horas...
Resolveu regressar a casa, desta vez sem pressa. O sangue não corria nervoso. Os passo respeitavam o ritmo normal do coração. Voltou a atravessar o pátio, os elevadores, escadas, portas e corredores. Entrou em casa e parou. Olhou à sua volta. Tudo estava exactamente na mesma. As cascas de maçã, o prato de plástico azul, o calor sufocante, o vento. Olhou para a sua mão e só então reparou na faca que tinha tirado de dentro da pia da cozinha. Pingava água ligeiramente azulada. Devolveu-a à pequena poça de água, limpou as mãos e em seguida o linóleo a imitar cortiça que revestia a cozinha, ao mesmo tempo hall de entrada e sala de estar.

Sentou -se no sofá, em frente ao televisor. Calmamente, pegou no telefone e marcou o número dela. Hoje precisava mais do que tudo que fosse um dia sim. Aquele dia acabaria com o som da vozinha dela.
Um som pequenino, quase inaudivel...