O CORTE
Fui finalmente ver O Corte, ontem à noitinha. Era o penúltimo dia de exibição e não o queria mesmo perder, mesmo tendo acabado de chegar do fim de semana abroad, mesmo tendo acabado de conduzir 200 chatíssimos quilómetros.
Comecemos então pelo melhor do espectáculo - ou pelo que mais me surpreendeu: a riqueza técnica. Belíssimo cenário e soluções afins. Escasso mobiliário, muito frio e impessoal, a fazer lembrar os filmes da RDA na década de setenta, quase de gabinete de psicanalista, quase agressivos. Preto, branco e inox, no chão, nas cadeiras e nas mesas. Inteligente a forma de o mudar de quadro para quadro - a peça é composta por três quadros, e nos intervalos duas actrizes executam mecanicamente a mudança rápida de cenário.
Óptima a trilha sonora, os pequenos trechos musicais e os efeitos sonoros, assim como o prodigioso jogo de luzes. Tudo a contribuir para compor um certo ambiente orwelliano da coisa.
O resto...
Muito bons os primeiros dois quadros.
Muito bom o duelo entre João Cardoso - também o encenador - e Luciano Amarelo. Tenso, rápido e num crescendo de nervoso miudinho que irrita e faz desejar o final da cena - só para ver se realmente morre alguém. Muito bem ambos os actores, pese embora alguns tiques mais clássicos de João Cardoso - não percebi se intencionais - a destoarem do estilo geral da peça. Quanto a Luciano Amarelo, posso parecer suspeito, já que sou amigo do senhor, mas acredito que é um valor inquestionável do teatro português. Sem exageros. A sua disciplina em palco é notória e notável. O corpo trabalha mesmo sem o percebermos, e a personagem, por força da voz, das expressões e dos movimentos, convence-nos e conquista-nos imediatamente.
Muito bom, muito mordaz e cínico, o quadro entre rosa Quiroga e novamente João Cardoso - aliás omnipresente em todo o espectáculo. Excelente a interpretação de um casal disfuncional e acomodado. Acomodado, mas não o suficiente para não se irritar com o comodismo de uma vida aborrecida.
Terrivelmente mau o último terço da peça. A deitar por terra todo o trabalho prévio. Novamente João Cardoso, mas desta vez com um actor - de que nem me lembro o nome - tão fraco, tão tecnicamente fraco, que acaba por diluir toda a tensão e todo o suspense construídos ao longo de quase uma hora de espectáculo. Sem voz, sem intenções e, basicamente, sem presença. Uma nulidade. Incompreensível.
De resto o texto é óptimo, como já seria de prever. Não fosse o seu autor Mark Ravenhill, enfant terrible do teatro inglês e principal figura do movimento conhecido como in yer face. Nada se esconde, tudo está à vista, sexo, drogas, linguagem menos comum. Não foi essa a intenção do encenador, ao adaptar este texto de Ravenhill. A peça incomoda aqui e ali, mas muito ligeiramente. A sua riqueza residia noutras coisas e foi nessas coisas que joão Cardoso pegou e trabalhou.
E fê-lo bem.
Mark Ravenhill
1 Comments:
At 22:47, pinkpoetrysoul said…
eu achei exactamente o mesmo Nuno... :)
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