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Bom Karma... ou não!

segunda-feira, abril 25, 2011

EM NOME DO PAI

Na Notícias Magazine deste Domingo, pode ler-se uma peça sobre a minha mãe a falar do seu pai. A falar das memórias que lhe ficaram da vida que teve em Angola. Memórias que sempre fez questão de nos passar e que são a herança familiar mais valiosa.


Em nome do pai

RITA PENEDOS DUARTE

Helena Sines Angola 1951-1975

Helena Sines Fernandes carrega o nome do pai com muito orgulho. É a história dele que pretende contar, para que todos o vejam pelos seus olhos. Mas é também a vida numa Angola de outros tempos que ela recorda e que deixa saudades, às vezes, acima do suportável.

«Estive cerca de 11 meses no meio do mato com a minha mãe», conta Helena Sines Fernandes. «A viagem de comboio durou três dias e fez-nos desembocar numa clareira, no aldeamento das minas de manganésio da Quitota.» É com saudade que se lembra da comissão de serviço da mãe, que era enfermeira no hospital militar e que lhe permitiu conhecer todo um mundo novo, de andar descalça o dia inteiro, de tomar banho no rio ou de segurar em cobras com pequenos paus. «Criei os meus filhos com uma liberdade controlada, mas não teve nada que ver com aquela vivência.»

Helena foi para Angola com apenas três meses, no ano de 1951, e só veio de férias a Lisboa uma vez, em 1973, já grávida do primeiro filho. «O meu marido queria cá ficar, mas eu quis ter o bebé em Angola.» Acabou por regressar à metrópole em Novembro de 1975, por temer pela segurança da sua família, mas deixando para trás toda uma vida, que continua a recordar com nostalgia. Os dias de sol - tão mais saudosos quanto são numerosos os dias de chuva na cidade de Vila Nova de Gaia, para onde se mudou - as amizades feitas no Colégio São José de Cluny e no Liceu Feminino, os vizinhos e os amigos acumulados ao longo dos anos, tudo ficou. «Também o meu pai ficou lá.»

Filha do jornalista Sines Fernandes, é com orgulho que se lembra da sua carreira profissional, do seu carácter solidário e também do seu feitio romântico. «A minha mãe era açoriana, de Ponta Delgada, mas já estudava Enfermagem em Lisboa quando conheceu o meu pai. Entretanto, foi para Odemira e deixaram de se ver. Mas assim que ele soube onde encontrá-la, foi até lá. Um dia, ela ia a atravessar a praça e viu-o. Foi um amor muito especial.» Numa fotografia tirada na época em que foram para Angola, podem encontrar-se semelhanças com Frida Kahlo e Errol Flynn. Com tais personagens, o seu amor talvez desse um filme. Casaram no Alentejo e oito anos depois nascia Helena. «Em 1951, quando ela era enfermeira-chefe no hospital em Odemira e o meu pai solicitador, decidiram ir para Angola, porque a vida não estava fácil. A minha mãe foi contratada por uma companhia holandesa e recebeu a carta de chamada.» Sines Fernandes acabou por ser contratado pela mesma empresa. Quatro anos depois a situação era outra. A mãe de Helena abrira um consultório em casa e fazia partos ao domicílio e o pai, depois de estar ao serviço da Companhia de Seguros Mundial, trabalhava no Jornal de Angola. «Ele não tinha formação como jornalista. Mas já na altura da Guerra de Espanha, onde esteve a combater, escreveu umas crónicas, numa espécie de diário que hoje está desaparecido.» Dava-se início a uma carreira de sucesso. Entrevistou personalidades tão diversas como António de Oliveira Salazar e a jovem actriz espanhola Marisol. Fazia crónicas para a rádio, para a agência noticiosa de Angola, e foi chefe de redacção do Jornal de Angola. Era para aí que trabalhava quando sofreu um grave acidente, que o deixou com mobilidade muito reduzida. «Foi no ano de 1963. Estava no Norte de Angola, na zona da Pedra Verde, a filmar em cima de um camião que tinha pouca estabilidade, por ser muito alto e estreito. O carro virou-se e ele caiu lá de cima.» Nesse dia, a sua mulher estava a trabalhar no Hospital Militar e recebeu a notícia de que, à semelhança de outras vezes, estava a chegar um helicóptero com dois feridos. Um deles era o seu marido. A poucas centenas de metros, no Liceu Feminino, Helena ouvia o já costumeiro barulho dos helicópteros e aviões militares que chegavam com feridos. Não sabia que um deles trazia o seu pai, que teria de enfrentar quase um ano de repouso e recuperação para não ficar totalmente incapacitado. «Não foi só o meu pai que se magoou. A família também ficou ferida e, a partir daí, tudo foi diferente.» Helena sentiu necessidade de ajudar e hipotecou os seus sonhos. «Um dia a minha mãe recebeu uma carta do colégio a dizer que eu andava a faltar às aulas. Confirmei-lhe que tinha anulado a matrícula e que iniciara um trabalho como dactilógrafa no jornal.» O treino na máquina de escrever do pai dera-lhe a vantagem necessária para compensar os seus tenros 16 anos. O curso de dactilógrafa, feito mais tarde, veio substituir a vontade de ser arquitecta. «Os tempos eram outros. Não havia qualquer segurança. Se não trabalhava e não amealhava, não se tinha qualquer hipótese de sobreviver.»

Assim que se soube do acidente, todos com quem Sines Fernandes se tinha relacionado apressaram-se a enviar rápidos desejos de melhoras. Agora era ele quem recebia cartas e telegramas para saberem do seu estado, mas pouco tempo antes era o jornalista quem fazia a selecção das cartas vindas da metrópole para os soldados. Tinha como objectivo responder por eles quando, por estarem em missão, não conseguiam fazê-lo. Procurava saber, via rádio, onde estava um tal combatente e como se encontrava. Depois respondia à família, dando notícias. Fazia o que podia - fora das horas e obrigações do expediente - para sossegar os corações de quem sofria longe pelos seus entes queridos.

Mesmo com dificuldades em mover-se e em escrever, continuou no Jornal de Angola. «Morreu a trabalhar e foi sepultado em Angola», conta a filha. Helena sentiu que esta era hora de prestar a devida homenagem a um homem que se tornou um herói aos seus olhos e aos de quem o conheceu. Ao contar a sua própria história, agradece também a bem-aventurada existência na terra que o seu coração adoptou. E da qual ainda não se sente desligada. «Recordo Angola diariamente. Às vezes sonho que estou em frente da minha casa. É de noite e as ruas estão desertas. Não sei o que significa, mas queria ir lá para ver as mudanças com os meus olhos. Só assim vou ser capaz de trancar a minha memória.»

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