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Bom Karma... ou não!

sábado, março 27, 2010

QUANDO O JORNALISMO É BURRO


Pensei várias vezes em escrever aqui qualquer coisa acerca da morte de MC Snake, o rapper português assassinado por um agente da PSP na semana passada. Já tinha desistido de o fazer, quando uma nova discussão em torno do trágico incidente me fez repensar no assunto. A discussão foi originada por uma crónica escrita por Alberto Gonçalves, e publicada no "Diário de Notícias" no passado dia 21 de Março, e à qual Rui Miguel Abreu - jornalista e radialista dedicado ao fenómeno Hip-Hop - deu a devida resposta, desta feita, na revista "Blitz".

O acontecimento foi abertura de todos os telejornais e primeira página de todos os principais jornais nacionais, pelo que seria escusado estar aqui a descrevê-lo com minúcia. Mas enfim, a coisa quer-se devidamente enquadrada, por isso, refiro apenas que o que aconteceu foi que um condutor decidiu não obedecer a uma operação Stop, fugiu, foi perseguido pela PSP e baleado por um agente. Morreu.

A crónica de Alberto Gonçalves, e que pode ser lida aqui, é de facto uma prova de como o jornalismo pode ser totalmente mal utilizado, desvirtuado e transformado numa ferramenta (pouco discreta) ao serviço de preconceitos, ignorância e de odiozinhos de estimação. O tom utliizado pelo jornalista é, no mínimo, aquilo que tantas vezes se chama de «politicamente incorrecto», embora eu prefira os termos «boçal», «ignorante» ou simplesmente «estúpido».

Desde logo começando pelo título, O 'hip hop' também mata, potencialmente provocatório, propositadamente exploratório, mas manifestamente idiota. Há muito que se sabe que o Hip-Hop também mata, à imagem, aliás, de tantos outros géneros musicais. O senhor Gonçalves, contudo, parecia não o saber ou, ainda mais grave, sabendo-o, utilizou esta aparente nova descoberta para enriquecer o seu texto. Esqueceu-se, porém, de que, ao contrário de tantos outros rappers, assassinados por concorrentes ou por fás de concorrentes, MC Snake foi assassinado por um polícia.

Mas entende-se a intenção do Gonçalves. Quer ele dizer que foi o estereótipo escolhido por MC Snake - o de rapper dos subúrbios, obviamente consumidor de substância ilícitas e até, quem sabe, traficante das mesmas - o dedo que premiu o gatilho do revólver do agente de polícia. É burro, o senhor Gonçalves, porque não parou sequer para pensar que esse mesmo agente da polícia poderia muito bem ter feito o mesmo se o condutor do veículo em fuga fosse um cantor de fado alcoolizado - sabida que é essa apetência quase obrigatória que todos os bons fadistas têm de se enfrascar como se não houvesse amanhã. Mesmo no fim da sua crónica, Gonçalves arrisca ir mais longe na estupidez e, referindo-se à vítima, solta a seguinte pérola:

O sr. Rodrigues, ou sr. "Snake", escolheu o seu próprio estereótipo. O que a polícia fez depois terá sido injustificável, mas não totalmente imprevisível.

Ou seja, segundo o jornalista(?), todos os que decidem conscientemente ser adeptos do Hip-Hop, têm de estar preparados para, mais dia, menos dia, levar um tiro pelas costas. Ou seja, vestiram-se à rappers, hip-hoppers ou B-Boys? Estavam a pedi-las. Admire-se, contudo, a coragem de alguém, com a responsabilidade de assinar uma crónica num jornal de grande tiragem, assumir assim publicamente a sua estupidez e mentalidade mesquinha. É de homem, sim senhor.

Outro ponto de vista verdadeiramente inacreditável, diz respeito ao Hip-Hop e ao rap. Senão vejamos:

O rap ou o hip hop que o sr. Rodrigues praticava não o transformava no "músico" referido em diversos obituários. No seu primarismo, o hip hop tem pouco a ver com música e muito a ver com uma atitude de confronto face a uma sociedade que é, ou que se imagina, discriminatória. É, vá lá, um estilo de vida, traduzido à superfície no vestuário ridículo e nos gestos animalescos. E nas letras das "canções" (?). As letras, que certa "inteligência" considera "poesia das ruas", são, além de analfabetas, manifestações de rancor social. Por norma, são também glorificações do crime e panfletos misóginos.

Custa admitir, mas nem tudo está errado na opinião polémica do senhor Gonçalves. O Hip-Hop é de facto misógino e tem tudo a ver com uma atitude de combate à desigualdade e à discriminação. Dizer, contudo, que tem pouco a ver com música é de uma ignorância (precisamente) musical que custa a acreditar. Para alem disso, fica mal ao senhor Gonçalves fazer juízos de valor baseados na maneira de vestir de quem cria, interpreta ou de quem simplesmente gosta de Hip-Hop. Por esse ponto de vista já muitos músicos tinham dado por terminada uma carreira de múltiplos sucessos.

A acendalha da suspeita de racismo explícito, surge quando o autor do texto afirma o seguinte:

O hip hop nasceu na América enquanto braço "musical" e tardio do black power, como os blaxploitation movies dos anos 1970 constituíram o seu reflexo "cinematográfico" (as aspas não são fortuitas). O princípio, se é que tais misérias possuem um, é o de que a "identidade negra" somente se define contra o "sistema", numa postura de desafio e fúria que a "inteligência" julga legitimada por uma suposta opressão.

Mas, mais uma vez, nem tudo está errado na observação do senhor Gonçalves. O Hip-Hop sempre foi objecto inflamatório; manifesto anti-discriminação, apologista de uma igualdade que nem sempre foi posta em prova no país onde o género MUSICAL nasceu. Esquece-se o senhor Gonçalves que nos EUA também havia apartheid e que muitas vezes essa segregação foi bem mais violenta que no país de Nelson Mandela. Mesmo assim, o senhor Gonçalves considera possuir um conhecimento profundo do Hip-Hop e de décadas de um enquadramento social que lhe é obrigatoriamente indissociável. Convencido dessa sapiência, dispara mais uma série de impropérios:

Obviamente, o hip hop é principalmente uma invenção das indústrias discográfica e televisiva, e não traria mal ao mundo se o mundo não se deixasse influenciar por semelhante patetice. Infelizmente, do Bronx a Chelas, essa celebração da boçalidade é erguida aos currículos escolares e milhões de jovens tomam-na por "afirmação". Na verdade, é o inverso: o hip hop é a sujeição dos pretos ao que o "multiculturalismo" em vigor deles espera. Ao trocar a literatura pela "poesia das ruas", a música pelo ruído, a educação pela agressividade, o esforço pela automarginalização, a única afirmação do hip hop é a da inferioridade. Se levado a sério, o paternalismo condescendente limita os membros de uma etnia a uma existência parcial nas franjas da legalidade. E não anda longe do folclore abertamente racista.

Novamente percebe-se que o homem tinha esta entalada há uns tempos e estava mortinho por ter uma oportunidade de a destilar publicamente. Mesmo assim, e seguro de todo o seu ódio pelo Hip-Hop e por aqueles que optam por um estilo de vida, traduzido à superfície no vestuário ridículo e nos gestos animalescos, e que apreciam músicas cujas letras são analfabetas, manifestações de rancor social, o senhor Gonçalves cede um bocadinho à independência de toda a sua teoria e busca consolo filosófico em certos pretos que considera (sabe-se lá como) intelectuais. Segundo ele, esses ilustres afro-americanos também não gostam de Hip-Hop e atacam constantemente o seu pendor segregacionista. Gonçalves vai mais longe na sua estupidez e cita um historiador, Stanley Crouch, que colocou certa vez a questão "quem no seu perfeito juízo daria um bom emprego a 50 Cent?".

Francamente não conheço os gostos musicais do senhor Gonçalves, mas atrevo-me a seguir-lhe o exemplo e a colocar a seguinte questão: quem no seu perfeito juízo daria um bom emprego a Mick Jagger, James Brown, Muddy Waters, Jimi Hendrix, Elvis Presley, Billie Holliday, Dexter Gordon, Charlie Parker - ou qualquer um de inúmeros músicos jazz, estilo que Gonçalves considera, e bem,
um dos maiores contributos da América para a humanidade - Amália Rodrigues, ou, regredindo ainda mais na história da música, Mozart?

O senhor Gonçalves é um ignorante com o poder de poder ser opinion maker, uma das profissões mais perversas e perigosas do mundo e a que o jornalismo, perigosamente, deu tempo de antena. O senhor Gonçalves, tem, obviamente direito a exprimir a sua opinião, mas a verdade é que se devia munir de argumentos mais sólidos, certos e determinados enquadramentos socio-culturais e, acima de tudo, de uma cultura musical mais abrangente, mesmo dos géneros musicais que não considera música. Para além disso, e apesar de todos os outros preconceitos que manifesta na sua crónica, já devia saber que ninguém escolhe as músicas de que gosta por estas serem mais ou menos marginais. Assim fosse e ninguém ouvia Johnny Cash, por exemplo.

O senhor Gonçalves nem precisava de estudar muito para saber que desde sempre o Hip-Hop foi a manifestação de descontentamento possível; uma forma de gritar contra uma superioridade racial tão válida e tão forte quanto o que os palestinianos escrevem nos muros dos israelitas - e o exemplo é válido apenas neste pormenor, ok? Mas sim, o Hip-Hop mudou e para algo de que eu também não aprecio. E porquê? Muito simples, senhor Gonçalves, porque deixou de ser apenas uma luta aberta a essa desigualdade para passar a ser uma demonstração vaidosa e egocêntrica do sucesso finalmente alcançado. Subitamente a música negra americana - e não só o Hip-Hop - passou a dominar as tabelas de vendas e os canais de música, as estações de rádio e os programas de entretenimento. Esse sucesso é ilustrado da forma mais parola e exibicionista nos telediscos das maiores vedetas do Hip-Hop. De tal forma que já muitos dos rappers da actualidade abandonaram o objectivo traçado pelos seus antecessores e centraram-se nesse «bling bling» irritante e de extremo mau gosto.

É a vida, senhor Gonçalves, também há quem não aprecie esta nova onda de fado, dizem uns, mais comercial e que desvirtua os deuses fadistas portugueses. Esta nova geração de fadistas que parece não saber que o fado era a música das vielas, das casas de putas, dos bêbados, dos marginais; dos artistas, dos escritores, dos poetas, dos génios. Que estilo de música ouve, senhor Gonçalves? Que estilo tão intocável de música aprecia? Que género musical tão isento de pecado ouve o senhor quando está em casa? Seja ele qual for, estude-o mais a fundo e descubra todos os seus podres. Vai ver que num instantinho desiste de ouvir música. E já agora, a seguir a isso, faça o mesmo com todas as outras artes. Em poucas semanas o seu mundo ficará um tudo ou nada mais cinzento.

1 Comments:

  • At 15:51, Anonymous Anónimo said…

    O DN, deveria rever este tipo de cronicas ao prinicipio "racistas", o que esse senhor disse, prova sinceramente uma grande falta de conhecimento e de civismo do mesmo . Esse senhor, nem devia ser o que é hoje(se o é ).

     

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