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Bom Karma... ou não!

sexta-feira, agosto 31, 2007

AULINHAS



Mas não dessas que vocês estão a pensar.
Dias de férias sem nada para fazer e duas sessões seguidinhas de filmes de Hitchcock. O mesmo é dizer, duas aulas de como fazer cinema, A Janela Indiscreta - um dos raros casos em que a tradução do título original ficou a ganhar - e Psico.
E sou obrigado a repetir-me: ninguém ultrapassa o realizador inglês na arte de fazer cinema. Ninguém inovou tanto ou inovará algum dia na sétima arte como o anafado Alfred fez, e o cinema seria hoje em dia bastante diferente caso ele nunca se tivesse dedicado aos filmes.
Em A Janela Indiscreta, o ambiente é tudo menos o ambiente de um normal filme de suspense. Aliás, não chega sequer a ser um filme de suspense mas sim um filme de dúvida. A mesma dúvida que inquieta a personagem principal, L. B. Jefferies - um magistral James Stewart -, invade-nos e deixa-nos a salivar pela conclusão do filmes e pela resposta a todo o mistério: houve ou não um assassinato no apartamento do prédio vizinho? Sem suspense, sem músicas irritantemente tensas e sem violência de qualquer tipo. Hitchcock chega ao ponto de filmar o único momento verdadeiramente angustiante de A Janela Indiscreta, quando acompanhamos Lisa - Grace Kelly - na sua arriscada incursão ao dito apartamento, ao som de um agradável jazz à Gerswhin, completamente contrastante com a sequência, mais uma vez, notável.

Como volta a ser notável o trabalho de câmara, em longos - por vezes longuíssimos - travellings; brilhante o trabalho de fotografia, concedendo à imagem um aspecto quente e confortável, fazendo-nos mesmo acreditar no verão em decorre a acção; geniais os actores, emprestando às personagens uma normalidade anormal para um filme de 1954, e não se fechando à habitual irreverência do realizador, sempre pronto a filmar cenas de uma sexualidade fortemente implícita, pontuadas por sugestões quase directas de sexo. Hitchcock foi um visionário, e fez bem em usar o seu poder junto dos estúdios, de modo a conseguir abordar todos os assuntos que marcaram os seus filmes.



Psico, de 1960, é visivelmente mais tradicional e conservador na forma como é filmado. A sua originalidade estava assente no conteúdo e no ditar de regras que ainda hoje são utilizadas em quase todos - ou mesmo em todos - os filmes de terror. Não existem grandes travellings, não existe um trabalho de iluminação diferente dos filmes seus contemporâneos, existe, isso sim, um clima constante de que alguma coisa muito má está para acontecer. E esse clima - aqui sim - é provocado quase exclusivamente pela partitura de Bernard Herrman, provavelmente a banda sonora mais conhecida e mais reconhecida da história da sétima arte. A originalidade de Psico, estender-se-ia também à ética de visionamento que Hitchcock desenvolveu, e que consistia em proibir a entrada de espectadores na sala depois do começo do filme. A campanha levada a cabo pela produtora e pela distribuidora ainda antes da estreia do filme na América, alertava o público para a obrigação de ver a obra desde o início, e para as consequentes vantagens que essa disciplina acarretava. E resultou. Psico foi um sucesso sem precedentes nessa altura. Óptimos actores - Janet Leigh e Anthony Perkins, que seria nomeado para o Oscar pelo seu desempenho como Norman Bates mas curiosamente apenas em Psico III -, e mais uma vez, o génio irreverente de Alfred Hitchcock, que não se fez rogado e filmou a sua actriz principal em soutien e em cenas de cama bastante arriscadas, ajudaram a tornar Psico num dos filmes mais famosos e referenciados da história do cinema. A famosa cena do chuveiro, a título de exmplo - uma sequência de dois minutos e meio, filmada em mais de 40 planos diferentes -, é provavelmente a cena mais copiada de sempre, nomeadamente em filmes de terror e suspense, culminando com a cara de Janet Leigh, morta no chão da casa de banho. Ninguém tinha a coragem de filmar a morte daquela maneira e depois de Psico, nunca mais uma cortina de banheira seria somente uma inocente cortina de banheira.