kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

quarta-feira, setembro 13, 2006


Tanta chuva.
Tanto calor.
Quando entrou em casa já nem sabia dizer com certeza se era água ou suor o que lhe escorria do corpo magro e moreno e que formava uma poça no chão da entrada, sob os seus pés descalços.
Chovia sempre tanto em Saigão que toda a gente sabia que o melhor era ter o chão plastificado. Nada de carpetes ou tapetes, mesmo dos mais baratos. A chuva era tanta que tudo se estragava em poucas semanas. Os únicos que pareciam não aprender com a chuva eram os estrangeiros. Os que trabalhavam na cidade como professores, ou secretários e secretárias das grandes companhias americanas e europeias. Esses insistiam sempre em substituir a alcatifa apodrecida pelo peso da chuva por outra, ainda mais bonita.

Sorriu ao pensar que naquela altura algum americano chamado Steve devia estar a amaldiçoar a chuva por ter arruinado o bonito tapete Made In Singapore, comprado no grande mercado por tuta e meia e que jazia agora, fétido e escuro no chão da sua cozinha.

Pegou numa tigela com gelatina de maçã que sobrara do jantar com a sua mãe na noite anterior e dirigiu-se para a sala. Como sempre fazia, saíu pela janela, escalou as escadas de incêndio que davam para o minúsculo terraço e lá chegado, sentou-se de frente para Saigão.
Tinha construido uma espécie de abrigo com longos pedaços de lona e ferros de guarda-sóis abandonados que encontrava nas suas caminhadas pela rua. Dessa forma podia estar ali, de frente para Saigão, sem ter de se preocupar com a chuva.
Tanta chuva.
Fazendo-lhe companhia estavam os pombos do senhor Mei.

O senhor Mei era um velho inquilino daquele prédio - a quem a miudagem chamava carinhosamente de "o velho da Manchúria", já que era da Manchúria que ele tinha vindo - que criava pombos, pelo simples prazer de os ter por perto.
Um dia o velho senhor Mei foi atropelado e como o seu estado de saúde ficou irremediavelmente ameaçado, um dos seus filhos decidiu-se a levá-lo de volta para a sua aldeia, lá longe, sem nunca se preocupar com o que ia ser dos pombos, que ficaram fechados no enorme pombal construido pelo senhor Mei, sem comida ou àgua.
Foi a única vez que a vizinhança se juntou por um propósito comum. Nunca se falavam, nem sequer para se cumprimentarem. Não faziam reuniões de condomínio, nem se juntavam para decidir o que se poderia fazer para melhorar a canalização do prédio, ou a recolha do lixo. Não se reuniam nas escadas nem para falar mal uns dos outros...
Mas juntaram-se, de forma quase espontânea, para libertar os pombos do senhor Mei da prisão a que tinham sido sujeitos. E no entanto os pombos não sairam do prédio. Passaram a habitar o minúsculo terraço e, dessa forma, a fazer-lhe companhia nos seus fins de tarde de frente para Saigão.

Pensava sempre nela, naqueles fins de tarde.
Lembrava-se do caderno preto que repousava há dois anos em cima do guarda-fatos sem fatos no seu quarto. O caderno onde nunca tinha escrito uma palavra sequer, mas onde estava o nome dela, seguido pelo seu número de telefone. Lembrava-se da noite em que isso tinha acontecido. Um café, amigos comuns, uma mesa, o caderno preto e ela do outro lado da mesa, à distância de um toque na mão. Do nada, sem que nunca o tivesse previsto, ela pegou no caderno, abriu-o gentilmente, escreveu qualquer coisa pequenina, quase ilegível, voltou a fechar o caderno, gentilmente, e entregou-o, num gesto que parecia nunca mais acabar. Era o seu nome. O nome mais bonito do mundo. E o seu número de telefone.

Lembrava-se do primeiro beijo que tinham dado. Um primeiro, tímido, na face, e um segundo, arriscado, na boca. Lembrava-se que naquele momento tinha ficado com um sabor incrivel nos lábios. Um sabor de primeiro beijo que não conseguia explicar. Como se nunca tivesse beijado mais ninguém na vida. Lembrava-se perfeitamente do carinho que sentiu naqueles minutos. Do carinho que encheu o carro naquela noite, e que lhe encheu o peito de ar quente por todos os dias que se seguiram.

E os fins de tarde acabavam sempre da mesma maneira, ali de frente para a bela Saigão.
Já não se sentia. Não sentia o seu corpo pequeno e moreno, e ás vezes tinha mesmo de se tocar para acreditar que existia realmente. Segurava o seu ante-braço com força, até doer, para saber que era mesmo ele que estava ali.
E quando começava a escurecer, e milhares de colunas de fumo se começavam a libertar dos telhados da cidade, lembrava-se da última vez que estivera com ela. Da dor que sentira ao ouvir a sua voz dizer-lhe que era melhor ir-se embora. Da imagem dela, em pé na entrada de sua casa, uma poça de água sob os seus pezinhos.

Descia as escadas de regresso à sua janela.
Entrava em casa e acendia um cigarro indiano.
Daqueles de que ela gostava tanto.

1 Comments:

Enviar um comentário

<< Home