kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

quarta-feira, maio 02, 2007



Provocado por um recente e dramático acidente que uma pessoa (remotamente) conhecida sofreu, e pelo facto de fazer agora três anos o acidente de que eu próprio fui vítima - mais precisamente no dia 24 de Abril de 2004 -, pus-me a pensar nesse acontecimento e nas coisas que daí resultaram - assim como nas que podiam ter resultado.

Acho que já aqui referi a natureza estúpida e infantil do acidente em si. Não podia ser mais idiota.
Em passeio por Castro Laboreiro, subi a um rochedo à beira da estrada e caí. Ponto final.
Correcção: em passeio por Castro Laboreiro, subi a um rochedo onde repousava um antigo cruzeiro, meti água e caí, esmagando o antebraço esquerdo e livrando-me da morte mais do que certa por esmagamento craniano, por meros dois centímetros.
Assim, em menos de um segundo.
Não me lembro practicamente de nada. De tal forma que, um mês após o acidente, desloquei-me novamente ao local e me dei conta de não me lembrar sequer da viagem do Porto para lá. Dos sítios, das ruas, dos edifícios, de nada. Tenho algumas «fotografias» que trago comigo na cabeça, mas memórias fixas, cristalinas, não tenho nenhuma.
Sei o que aconteceu porque as pessoas que estavam comigo - e não quero sequer pensar no que teria acontecido caso estivesse sozinho - me relataram o sucedido.
Sei, portanto que subi a esse rochedo para tirar fotografias.
Sei que estava lá o tal cruzeiro e que me apoiei nele de uma forma irresponsável.
Sei que ele me sacudiu de imediato, caindo comigo do cimo do rochedo.
Caí em cima do meu braço esquerdo e fracturei-o tantas vezes, e em tantos bocadinhos, que ainda hoje não sei como os médicos que me operaram o conseguiram voltar a colar.
Sei também que as pedras de granito que compunham o pobre cruzeiro - e que, relembro, me acompanharam na queda - pousaram ao lado da minha cabeça, afastadas apenas pelos tais dois centímetros de que falo mais acima, depois de me terem tocado na orelha o suficiente para lhe fazer uma feridinha..
Sei que os meus amigos, e a minha mulher nessa altura, correram para mim na certeza de que eu já estava morto. A ilusão de óptica prega partidas, e de onde eles estavam, as pedras tinham caído em cima de mim.
Estive morto, dois, três segundos. Estive morto pelo tempo que eles demoraram a chegar até mim. Como será essa sensação? De ver alguém que amamos, morto no chão. De uma forma tão estúpida? Tão rápido.

A primeira fotografia é a de eu a acordar de um breve desmaio e de não sentir o braço. De gemer qualquer coisa, uma interjeição de desconforto, acho, porque doer, não me doía nada. Só a falta do braço esquerdo, agora em "S".
A segunda fotografia é aquela em que está um sol abrasador, e alguém abriu um guarda-chuva sobre mim. Aquela em que a minha mulher fala comigo muito suavemente para me acalmar. E eu que nem estava exaltado. Em choque, sim, mas calmo como se não se tivesse passado nada. E repetia "o que é que aconteceu?" e "é exposta?" de quinze em quinze segundos.
Outra fotografia, aquela em que vou na ambulância aos saltos pelos caminhos de terra e ainda assim a tentar fazer rir os que iam comigo na viagem.
Mais uma, da voz espanhola da médica que me recebeu no posto médico.
E a seguir uma confusão de imagens, de pessoas à minha volta, umas com bata, outras sem bata, da minha mulher sempre mesmo ali, do ponto que levei na orelha, do gesso à volta do braço, do radiologista, “agora vamos tirar-lhe a única fotografia em que ficamos sempre a rir”, quando me fez um raio-X à cabeça, da t-shirt cortada a direito no hospital de S. João, de adormecer e acordar continuamente, de alguém me dizer que não me podiam operar senão na manhã seguinte por não existirem parafusos para o meu tamanho, de acordar da operação e vomitar verniz das unhas e de chorar quando o médico me disse que tinha uma lesão grave nos nervos do braço, “cubital e radial”, disse ele.
Não mexia os dedos, nenhum, nem a mão, descobri mais tarde quando tirei o gesso. Não mexiam. Não conseguem imaginar a sensação de «mandar» o corpo fazer algo tão normal e o corpo não obedecer. Recusar, terminantemente.
Chorei muitas noites no corredor do hospital.
Chorei quando me tiraram pela primeira vez o gesso para me limparem o braço, e vi um braço disforme, torto, pisado, agrafado por quarenta e não sei quantas vezes. Não era meu, aquele braço. Não era. Eu não o queria, não o tinha pedido e não o queria ali.
Chorei noites sem fim já em casa. Noites acordado até ver o sol.
E essa foi a dor maior. A dor da certeza de que nada seria novamente a mesma coisa. Nunca o meu braço esquerdo voltaria a ser igual. Nunca. E como nunca mais foi. E como não é.

Os acontecimentos da última semana fizeram-me relembrar isso tudo e pensar na rapidez da morte. É rápida e determinada. Como podia ter sido para mim, e como podia ter sido para as pessoas que estavam no jipe que sofreu um terrível acidente.
Pensei em tudo o que podia ter acontecido naquela tarde em Castro Laboreiro. Pensei no que não aconteceu.
Sinto os meus dedos anelar e mindinho dormentes enquanto escrevo isto, e sinto que nunca mais eles me vão deixar esquecer o que aconteceu há três anos. Nunca mais. São cicatrizes que não se fecham com pontos. São cicatrizes que não se vêem e que nenhuma cirurgia plástica pode resolver.
Senti esse acidente de jipe com a mesma intensidade com que me lembro do meu, há três anos. Sei o que a nossa vida pode mudar. Sei muito bem o que nos pode mudar por dentro. E quase me apetecia estar lá, naquela montanha, e mesmo sem me fazer notar, dar um jeitinho àquela roda do jipe que resvalou para fora da estrada e impedir que uma simples visita ao nascer do sol resultasse em algo tão mau.
Fez três anos, no dia 25 de Abril, que estive morto por dois, três, segundos, e ainda aqui estou. Como vocês ainda cá vão estar daqui a três anos.

Uma parte de mim ficou lá ao lado do cruzeiro que eu fui incomodar. Não deixem nada vosso nessa beira de estrada de montanha a caminho do nascer do sol.

3 Comments:

  • At 15:12, Anonymous Anónimo said…

    Mas eles estão bem. A minha estrelinha foi lá proteger!
    Não acreditas? E tu prometeste q ía ficar tudo bem com ele. E que eu ía voltar a comer e esta sombra ía sair do meu coração. Tempo!

     
  • At 09:36, Anonymous Anónimo said…

    é um dos textos mais bonitos que me lembro de ver aqui... talvez a diferença entre escrever com o coração e escrever com a cabeça... beijinhos

     
  • At 13:52, Blogger karmatoon said…

    É engraçado como nunca estou à espera que comentem os meus textos e como, sempre que o fazem, descubro coisas novas e relembro certezas de coisas em que já tinha pensado.
    O texto - perdoem-me o egoísmo - não era sobre os acidentados do jipe - desejo-lhes rapidíssimas melhoras. Era sobre mim e sobre um sem número de coincidências que acontecimentos destes transportam SEMPRE.
    E no entanto...

     

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