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Bom Karma... ou não!

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Olhos de Cão Azul - Gabriel Garcia Márquez (1950)

Ouçam e leiam...




Então olhou para mim. Eu julgava que era a primeira vez que olhava para mim. Mas depois, quando deu a volta por detrás do castiçal de madeira e eu continuava a sentir sobre o ombro, nas minhas costas, o seu olhar fugidio e líquido, compreendi que era eu que olhava para ela pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei o fumo áspero e forte antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas de trás. Então vi-a ali, como tinha estado todas as noites, parada junto ao castiçal, olhando-me. Eu olhando para ela da cadeira, equilibrando-me numa das pernas de trás. Ela em pé, com uma mão comprida e quieta sobre o castiçal, olhando para mim. Via-lhe as pálpebras iluminadas, como todas as noites. Foi então que me lembrei do mesmo de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela disse-me, sem retirar a mão do castiçal: "Sim, nunca mais o esqueceremos". Saiu da luz, suspirando: "Olhos de cão azul". Escrevi isso por todo o lado." Vi-a dirigir-se para o toucador. Vi-a aparecer na lua redonda do espelho, olhando-me agora ao fim de uma ida e volta de luz matemática. Vi-a a continuar a olhar para mim com os seus grandes olhos de cinza incendiada, olhando-me enquanto abria a caixinha com embutidos de madre-pérola rosada. Vi-a empoar o nariz. Quando acabou, fechou a caixinha, voltou a levantar-se, e aproximou-se de novo do castiçal, dizendo: Receio sempre que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas", e estendeu sobre a chama a mesma mão longa e trémula que estivera a aquecer antes de se sentar ao espelho. E disse: "Não sentes o frio?" E eu disse-lhe: "Às vezes". E ela disse-me: "Deves estar a senti-lo agora". E então percebi porque é que não poderia estar só na cadeira. Era o frio que me dava a certeza da minha solidão. "Agora estou a sentir", disse. "E é estranho, porque a noite está calma. Talvez me tenha caído a roupa da cama." Ela não respondeu. Começou outra vez a andar na direcção do espelho e eu voltei a girar a cadeira para ficar de costas para ela. Sem a ver, sabia o que ela estava a fazer. Sabia que estava outra vez sentada em frente do espelho, vendo as minhas costas, que tinham tido tempo de chegar até ao fundo do espelho e serem encontradas pelo olhar dela, que também tivera o tempo certo para chegar até ao fundo e voltar antes que a mão tivesse tempo de começar a segunda volta até aos lábios que estavam agora pintados de vermelho, desde a primeira volta da mão junto ao espelho. "Estou a ver-te" disse-lhe. E ela voltou a levantar os olhos do corpete: "É impossível", disse. E eu perguntei porquê. E ela, outra vez com os olhos fitos no corpete: "porque tens a cara voltada para a parede". Então fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado nos lábios. Quando cheguei perto do espelho, estava ela outra vez junto do castiçal. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas de galinha abertas, a assar, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. "Acho que me vou constipar", disse ela. "Esta cidade deve ser gelada." Voltou o rosto de perfil e a sua pele de cobre ao rubro tornou-se repentinamente baça. "Faz alguma coisa contra isso", disse eu. E ela começou a despir-se, peça por peça, começando por cima, pelo corpete. E eu disse-lhe "Vou virar-me para a parede". E ela respondeu: "Não, seja como for, tu vês-me, como me viste quando estavas de costas". Ainda não tinha acabado de falar e já estava quase completamente despida, a chama lambendo-lhe a pele de cobre. "Sempre quis ver-te assim, com a pele da barriga cheia de buracos fundos, como se te tivessem empalado". E antes de me dar conta de que as minhas palavras haviam sido perversas face à sua nudez, ela ficou parada, aquecendo-se no candelabro, e disse: "Às vezes julgo que sou feita de metal". Ficou calada por um instante. A posição das mãos sobre a chama variou ligeiramente. Eu disse: "Às vezes, noutros sonhos, julguei que eras uma estatueta de bronze num canto de um museu qualquer. Talvez seja por isso que tens frio. E ela disse: "Às vezes, quando adormeço sobre o coração, sinto que o corpo se me torna oco e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me bate por dentro, é como se alguém me estivesse a chamar, batendo-me no ventre com os nós dos dedos, e sinto o meu próprio som de cobre na cama. É como se eu fosse assim como tu dizes: de metal laminado". Aproximei-me mais do castiçal. "Teria gostado de te ouvir", disse. E ela respondeu: "Se alguma vez nos encontrarmos, encosta o ouvido às minhas costas e ouvirás o meu ressoar. Sempre desejei que um dia o fizesses". Ouvi-a respirar fundo. E disse que durante anos não tinha feito senão isto. A sua vida estava dedicada encontrar-me na realidade, através dessa frase reveladora: "Olhos de cão azul". E na rua ia dizendo em voz alta, que era uma maneira de o dizer à única pessoa que teria podido entendê-la: "Eu sou a que chega aos teus sonhos todas as noite e te diz: olhos de cão azul". E disse que ia a restaurantes e dizia aos criados, antes de pedir o que queria: "Olhos de cão azul". Mas os criados faziam-lhe uma vénia respeitosa, sem se lembrarem de alguma vez terem dito aquilo nos seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e raspava com uma faca o verniz das mesas: "Olhos de cão azul". Disse que uma vez entrou numa drogaria e sentiu o mesmo cheiro que sentira no seu quarto, uma noite, depois de ter sonhado comigo. "Deve estar perto", pensou, vendo o ladrilho novo e limpo da drogaria. Então aproximou-se do empregado e disse-lhe:" Sonho sempre com um homem que me diz: olhos de cão azul". E disse que o empregado a tinha olhado nos olhos e lhe dissera: "Na verdade a menina tem os olhos assim". E ela disse-lhe: "Preciso de encontrar o homem que em sonhos me diz isso mesmo". E o vendedor desatou a rir e dirigiu-se para o outro lado do balcão. Ela continuou a olhar para o ladrilho limpo e a sentir o cheiro. E abriu a mala e ajoelhou-se e escreveu no ladrilho, em grandes letras vermelhas, com o baton dos lábios: "Olhos de cão azul". O vendedor voltou de onde estava e disse-lhe: "Menina, está a sujar o ladrilho". Deu-lhe um trapo húmido, dizendo: "Limpe-o". E ela disse, agora junto ao candelabro, que passou toda a tarde de gatas, a lavar o ladrilho e a dizer: "Olhos de cão azul", até que as pessoas se juntaram à porta e disseram que ela estava louca. Agora, quando acabou de falar, eu continuava no meu canto, sentado, equilibrando a cadeira. "Tento lembrar-me todos os dias da frase com que devo encontrar-te", disse-lhe."Agora acho que amanhã não me vou esquecer. No entanto, disse sempre o mesmo e esqueci-me sempre, ao acordar, das palavras com que devo encontrar-te". E ela disse: "Tu mesmo as inventaste desde o primeiro dia". E eu disse-lhe: "Inventei-as porque te vi os olhos de cinza, mas nunca me lembro delas na manhã seguinte". E ela, com os punhos fechados junto ao castiçal, respirou fundo: "Se ao menos conseguisse lembrar-me agora em que cidade é que estava a escrever". Os seus dentes cerrados brilhavam à luz da chama. "Gostava muito de te tocar agora", disse-lhe. Ela ergueu o rosto que tinha estado a olhar para o lume, ergueu o olhar, ardendo, queimando-se também como ela, como as suas mãos; e eu senti que me viu, no canto onde continuava sentada, mexendo-me na cadeira. "Nunca me tinhas dito isso", disse ela. "Digo agora, e é verdade". Do outro lado do castiçal, ela pediu um cigarro. O resto do meu cigarro tinha-me desaparecido entre os dedos. Tinha-me esquecido que estava a fumar. Ela disse: "Não sei porque é que não me consigo lembrar onde foi que o escrevi". E eu disse-lhe: "Pela mesma razão por que eu não conseguirei lembrar-me das palavras pela manhã". E ela disse, triste: "Não. É que às vezes julgo que isso também foi um sonho que sonhei". Levantei-me e dirigi-me ao castiçal. Ela estava um pouco mais para lá, e eu continuava a andar, com os cigarros e os fósforos na mão que não passaria do candelabro. Estendi-lhe o cigarro. Ela segurou-o entre os lábios e inclinou-se para chegar à chama, antes de eu ter tempo de acender o fósforo. "Numa cidade qualquer do mundo, em todas as paredes. Têm de estar escritas essas palavras: olhos de cão azul", disse-lhe. "Se amanhã me lembrar delas, vou procurar-te". Ela levantou outra vez a cabeça, e tinha já a brasa acesa entre os lábios. "Olhos de cão azul", suspirou, recordou, com o cigarro descaído e um olho semicerrado, e exclamou: "Isto já é outra coisa. Estou a entrar no calor". E disse-o com a voz apagada e fugidia. Como se não tivesse realmente dito, como se o tivesse escrito num papel e tivesse aproximado o papel da chama enquanto eu lia: "Estou a entrar..." e ela tivesse continuado com o pedaço de papel entre o polegar e o indicador, enquanto ele se consumia e eu acabava de ler "... no calor", antes do papel se consumir completamente e cair no chão, enrugado, mirrado, transformado num montinho de cinza esbranquiçada. "Ainda bem", disse eu, "Às vezes assusta-me ver-te assim. A tremer junto do castiçal".
Há vários anos que nos encontrávamos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém lá fora deixava cair uma colher no chão e acordávamos. Pouco a pouco, tínhamos compreendido que a nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais simples. Os nossos encontros acabavam sempre assim, com o cair de uma colher na madrugada.
Agora, junto ao castiçal, ela olhava para mim. Eu lembrava-me que antes também me tinha olhado assim, desde aquele remoto sonho em que fiz girar a cadeira nas pernas de trás e fiquei frente a uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi nesse sonho que lhe perguntei pela primeira vez: "Quem é você?" e ela me disse: "Não me lembro". E eu disse-lhe: "Mas julgo que já nos vimos antes". E ela disse, indiferente: "Julgo que sonhei consigo uma vez, neste mesmo quarto". E eu disse-lhe: É isso, começo agora a lembrar-me". E ela disse: É curioso. É verdade que já nos encontrámos noutros sonhos".
Deu duas fumaças no cigarro. Eu estava parado junto ao castiçal quando, de repente, olhei para ela. Olhei-a de cima a baixo e era realmente de cobre; mas já não de metal duro e frio, mas de cobre, amarelo, macio, maleável. "Gostava de te tocar", voltei a dizer. E ela disse: "Ias deitar tudo a perder". Eu disse: "Agora não faz mal. Basta virarmos a almofada para nos voltarmos a encontrar". E estendi a mão por cima do castiçal. Ela não se mexeu. "Ias deitar tudo a perder", voltou a dizer, antes que eu pudesse tocar-lhe. "Talvez se deres a volta por detrás do castiçal, acordemos sobressaltados sabe-se lá em que parte do mundo". Mas eu insisti: "Não faz mal". E ela disse: "Se virássemos a almofada voltaríamos a encontrar-nos. Mas tu, quando acordares ter-te-ás esquecido disso". Comecei a andar para o canto. Ela ficou para trás, aquecendo as mãos na chama. E, no entanto, ainda não tinha chegado à cadeira quando a ouvi dizer nas minhas costas: "Quando acordo, à meia-noite, fico às voltas na cama, com o pano da almofada a arder-me na cara e repetindo até amanhecer: «Olhos de cão azul»."
Então eu parei, a cara contra a parede. "Já está a amanhecer", disse, sem olhar para ela. "Quando deram as duas já estava acordado, e já passou muito tempo". Dirigi-me para a porta. Quando agarrei a maçaneta, ouvi outra vez a voz dela, igual, invariável: "Não abras essa porta, o corredor está cheio de sonhos difíceis". E eu disse-lhe: "Como é que sabes?". E ela disse-me: "Porque há pouco tempo estive lá e tive de voltar quando descobri que estava a dormir sobre o coração". Eu tinha a porta entreaberta e uma aragem fria e leve trouxe-me um cheiro fresco a terra vegetal, a campo húmido, Ela falou outra vez. Voltei-me, fazendo rodar a porta nos seus gonzos silenciosos e disse-lhe: "Acho que não há corredor nenhum aqui fora. Sinto o cheiro do campo". E ela, já um pouco longe, disse-me: "Conheço isto melhor do que tu. O que passa, é que lá fora está uma mulher que sonha com o campo". Cruzou os braços sobre a chama. Continuou a falar: "É essa mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca conseguiu sair da cidade". Eu lembrava de ter visto uma mulher num qualquer sonho anterior, mas sabia já, com a porta entreaberta, que dentro de meia-hora teria de descer para o pequeno-almoço. E disse-lhe: "Seja como for, tenho de sair daqui para acordar".
Lá fora o vento soprou um momento, depois ficou quieto e ouviu-se a respiração de alguém que dormia e acabava de se virar na cama. O vento do campo parou. Não houve mais cheiros. "Amanhã hei-de reconhecer-te quando vir na rua uma mulher a escrever nas paredes: " «Olhos de cão azul»". E ela, com um sorriso triste, que já era um sorriso de entrega ao impossível, ao inatingível, disse: "A verdade é que não te lembrarás de nada durante o dia". E voltou a pôr as mãos sobre o castiçal, com a expressão ensombrada por uma névoa amarga: "És o único homem que, ao acordar, não se lembra de nada do que sonhou".

Nunca me lembro do que sonho...



2 Comments:

  • At 14:11, Blogger Meninez said…

    tenho pena d nao poder ouvir... mas ao saber que o poder dos olhos de cão azul se vai espalhando, sinto-me como que inundada de poesia. Abraço forte, Ines

     
  • At 22:08, Anonymous Anónimo said…

    Da minha alma azul
    nasce ainda uma outra côr.
    Amanhã será ainda dia
    e eu verei a minha mão fria
    percorrer mais um sonho
    em que falámos de amor
    em que eu fiz de conta
    que o meu sorriso enfadonho
    não mais seria
    a razão do teu acreditar.
    E até a noite voltar
    me deitarei sobre a maresia
    lembrando-me desse desconhecido que me afronta
    e de quem me esqueço ao acordar.

     

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