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Bom Karma... ou não!

quarta-feira, janeiro 28, 2009

CUBA, 1958 - 2008






Sempre senti, e sinto, uma enorme admiração pela revolução que derrubou o regime de Fulgêncio Batista em Cuba. Sempre me fascinaram as figuras de Fidel Castro e Che Guevara, e que ditaram, sem querer, as regras da imagem do puro guerrilheiro revolucionário. Sinto, como muita gente, um encanto romântico e apaixonado pelo reaccionário abnegado e altruísta que vive na selva, que desce das montanhas para libertar um povo oprimido - parece coisa de filme ou de banda desenhada, mas aconteceu em Cuba e continuará a acontecer em quase todo o mundo.

Hoje, passados cinquenta anos da queda de Batista, percebo que grande parte desse fascínio resulta do que apenas 3000 homens conseguiram face ao poder militar de 80 000. Vale sempre a pena lembrar o que a vontade destes homens e o seu amor pelo seu país fez acontecer. Foi um acontecimento épico, digno das páginas da historia e que faz lembrar tão bem o que 300 espartanos fizeram na cara de milhares de persas.

Romance à parte, interessa, acima de tudo, pensar no que é o país Cuba desde que Fidel Castro assumiu a liderança da ilha. É importante perceber porque ao longo de cinco décadas as mudanças não foram o que todo o povo cubano - e todos os que mais ou menos secretamente apoiaram a revolução - estava à espera. De uma ditadura totalmente egocêntrica e violentamente opressiva, Cuba passou para uma ditadura que pode até nem ser egocêntrica - embora tenha sido desenhada por um homem só e à imagem da sua casmurrice - mas que continua a ser violentamente opressiva. Uma ditadura que continua a ser apoiada por um comunismo mundial que continua a recusar o facto de que está morto, e que só se coloca ao lado de Castro, que só lhe perdoa as consecutivas violações dos direitos humanos mais básicos, porque continua a ser uma das formas mais declaradas de anti-americanismo. Eu também me irrito com a prepotência americana e com a forma como se continuam a achar donos do mundo. Contudo, este tipo de comportamento anti é típico de quem não tem argumentos para contrariar o rufia que bate em tudo e todos no recreio da escola. E é ridículo.

Basta saber um bocadinho de história para percebermos que esse mesmo comunismo que é tão ferrenho no seu anti-americanismo, sempre se comportou da mesma forma que o seu eterno inimigo. Desde o fim da segunda guerra mundial a URSS sempre se dedicou a expandir o seu território e, mais do que isso, a sua ideologia e a sua forma de fazer política, a sua economia e a sua visão do que são os direitos básicos da humanidade. Alguém ainda se lembra da «cortina de ferro» e o que significava para os países ocupados pelos regimes-fantoche fieis a Moscovo? Ou seja, os dois lados que alimentaram a guerra fria durante cinquenta anos são exactamente iguais e no entanto... é irónico, não é? As pessoas e a sua curta e tão oportuna memória.

No dia do aniversário da revolução cubana, corri a imprensa precisamente para tentar saber mais um bocadinho deste episódio da história contemporânea que tantas paixões faz eclodir. Foi pelo jornal que fiquei a saber que a maior parte dos seguidores de Fidel que fizeram a revolução já há muito abandonaram a ilha. Já há muito que perceberam que afinal não conseguiam viver na ilha de Castro. Fico a saber os que defendem o ditador, argumentando que em Cuba há ensino e saúde gratuitos, e que o povo não passa fome, têm mesmo razão. O que eles não sabem é que é unânime a opinião das mais diversas organizações mundiais e dos seus observadores e que defendem que Cuba vive num generalizado estado de miséria. E que já há muito que o povo deixou de se orgulhar de se ter tornado mais culto, de ter uma taxa de mortalidade infantil das mais baixas do mundo, dos sucessos desportivos em diversas modalidades. O que lhes continua a doer é existirem duas moedas no seu país, a sua e a dos estrangeiros. É existirem hoteis e restaurantes onde lhe é barrada a entrada, "tourists only". É não poderem aceder à internet, não só porque até há bem pouco tempo lhe era totalmente proibido, mas também porque não a podem pagar. Dispõem de uma intranet, lenta, filtrada, altamente condicionada. O que lhe custa é não poderem sair e entrar do país à vontade, não poderem falar à vontade do governo, não poderem criar partidos opositores ao regime, não terem o direito à manifestação, nao saberem o que são eleições livres. Aos comunistas que tanto defendem Castro deixo uma pergunta: o que acham que aconteceria a alguém que em plena via pública exibisse um cartaz com as palavras "Fora Fidel!"? Para além disso, o tão saudado sistema de saúde cubano - e que de facto é um dos melhores do mundo - é construído sobre péssimas condições profissionais para quem o exerce. O salário médio de um médico oscila entre os 2€ e os 5€. Um litro de leite estrangeiro custa 1.6€. Um barbeiro ganha 12€ por mês, mas um guia turístico ganha 100€. Enquanto isso, um simples par de sapatos vale de 25€ a 50€ e uma garrafa de azeite 11€.



Por esta altura, os que conseguiram ler este texto até aqui devem estar a pensar "pois, o maldito embargo". Desenganem-se. O boicote político-económico que dura há quase tanto tempo quanto a revolução dos barbudos, faz cada vez menos sentido. Pelas razões que se conhecem e por mais uma: porque não é de facto o causador de todos os males cubanos, como algumas classes políticas e sociais querem fazer parecer. O embargo é a melhor maneira que os dirigentes cubanso têm de responsabilizar o vizinho pelo mal que se passa no seu próprio quintal. Na realidade, a ilha apenas esteve vedada ao mundo durante a famosa crise dos mísseis, em 1962. De lá para cá muita coisa mudou, nomeadamente o facto dos EUA serem o país que clandestinamente mais negoceia com Cuba. Legalmente, porém, a coisa fica ainda mais curiosa, já que a América é o maior exportador de alimentos para a ilha de Fidel e o sexto maior parceiro económico. Na verdade, os problemas graves por que passam os cubanos resultam tanto ou menos desse famigerado embargo do que da corrupção e da falta de liberdade impostos pelo regime castrista. Na ânsia de manter os seus cubanos num regime à prova de capitalismo, Fidel Castro cortou-lhes todas as ligações com a humanidade, sujeitando-os a um estilo de vida miserável e de constante sacrifício. Sacrifício que ele e os altos cargos dos seus sucessivos governos nunca tiveram de fazer, claro está. Para além disso, nos últimos 50 anos, mais de 15% da população cubana fugiu do país, e é precisamente dessa população - da população considerada traidora pelo regime - que vem o maior contributo financeiro para o regime. Só da comunidade residente nos EUA chegam anualmente aos cofres cubanos 1000 milhões de dólares.

Cuba vive em três patamares tão distintos quanto desiquilibrados. O povo, na miséria constante e que por força da forma como encara as dificuldades se considera o mais bem humorado de toda a América Latina - são várias as anedotas criadas para cada uma das evidências da miséria em que vivem - todos os que estão de uma forma ou outra ligados ao governo e os turistas. Os últimos visitam Cuba como se olhassem para um aquário. Passam férias em Varadero, onde tudo é bonito, tudo é limpo, tudo é perfeito até ao dia em que o recepcionista lhes agarra a mão com força e na surdina lhe implora por algum dinheiro para leite em pó. Sempre com um sorriso turístico, claro, que não se pode desapontar os hóspedes. Os dependentes/relacionados/agarrados do/com/ao governo vivem uma vida de regalias. São os turistas que vivem na parte mais bonita do aquário. Uma dessas tais anedotas, quase trágica, reza assim: "Posso tratá-lo por senhor ou prefere camarada?" Resposta: "Senhor. Camarada é aquele que vai no Mercedes".

Cuba continua a não ratificar as principais convenções internacionais sobre liberdade e direitos políticos. Organizações como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e Repórteres Sem Fronteiras continuamente acusam o regime cubano de manter pelo menos 58 prisioneiros de consciência e a violentamente perseguir qualquer tipo de opositores. A pena de morte permanece válida em Cuba, e embora a última execução tenha acontecido em 2003, meia centena de condenados à pena capital continua à espera da sua vez. Entre eles, estão homossexuais e, imagine-se, alguns desses prisioneiros de consciência.

Volto ao início: continuo a encantar-me com o acto da revolução cubana. Com os homens que a fizeram e com todo um imaginário construído em torno do protótipo do revolucionário. Tenho no entanto cada vez mais a certeza de que Camilo Cienfuegos, um dos maiores heróis da revolução, e provavelmente o preferido do povo, não merecia este resultado e estes 50 anos de miséria, opressão e desrespeito pelos cubanos.
Fontes: Visão e Público