kar(ma)toon

Bom Karma... ou não!

domingo, abril 17, 2016

AS PUTAS E OS DOUTORES



Esta crónica não é sobre futebol.

Tinha 17 anos quando sofri o meu primeiro desgosto de amor pelo jornalismo. Aconteceu no meu primeiro dia de trabalho no jornal O Jogo depois de vir da minha primeira entrevista e quando me sentei para a passar para o computador e me dei conta de que a redação – um comprido e estreito rectângulo – se dividia em dois grupos bem distintos: na primeira metade os jornalistas de futebol, na segunda e mais pequena metade, os de todas as outras modalidades, as «amadoras», onde eu estava a escrever tudo o que sabia sobre o Michael Jordan, o Clyde Drexler e o Dominique wilkins. Mais do que paternalismo, era a velha história dos filhos da mãe e dos filhos da puta. O jornalismo, aprendi nesse dia, está cheio de ambos.

O jornalismo partiu-me o coração uma segunda vez e não muito tempo depois da primeira – só tinha 17 anos, é a idade ideal para partirmos o coração em catadupa – quando o Pinto da Costa e o Valentim Loureiro entraram pela primeira vez (para mim) na redação, acompanhados por um séquito que, só mais tarde viria a saber, era habitualmente constituído por árbitros e empresários das mais diversas áreas, para levarem uns quantos jornalistas de futebol a almoçar. Não muito longe dali existia um bar de putas onde, imagino eu, os mesmos intervenientes comiam a fruta que já deu tanto que falar. 

Mais ou menos vinte anos mais tarde, tive a certeza absoluta de algo que já há muito me vinha atormentando o coração jornalista. Foi durante o curso de jornalismo que deixei de ter dúvidas de que os jornalistas não são hoje mais do que secretárias do senhor doutor; uma espécie de profissional altamente qualificado para escrever uma alarvidade de palavras por minuto que lhe são ditadas pelas agências de comunicação, assessores de imprensa e, acreditem ou não, boatos ou quase boatos que circulam pela world wide web. São – ou continuam a ser – ao mesmo tempo, as putas de todos os outros doutores. Deitam-se com eles, jantam e bebem copos com eles, planeiam com eles e partilham interesses com eles. Obedecem-lhes cegamente.


Mas esta também não é uma crónica sobre jornalismo.

Sou sportinguista. Para espanto de muitos amigos, que não entendem como isso é possível tendo eu vivido quase toda a minha vida no Porto e que chegam a perguntar-me «de onde é que isso veio?», sou sportinguista. Sou, quero acreditar, um sportinguista saudável: não espumo de raiva perante os adversários, não bato na minha mulher quando a equipa perde e quando a equipa perde, perde sozinha, que as minhas derrotas estão muito longe do campo de futebol dos outros. Não sou sócio, não pago quotas e não tenho um cachecol verde e branco. Se sou sportinguista, isso significa que, como dizem os rivais, estou habituado a sofrer tantos anos sem conquistas significativas. Mas na verdade não sofro. Vou desistindo, isso talvez. Vivo vitória a vitória sem pensar no grande final, no money shot que é a conquista de um campeonato ou de um título europeu. Percebo, por essa razão, o que é ser adepto de um clube mais pequeno, daqueles que por muito bem que joguem nunca terão como objectivo o campeonato nacional. E vivo bem com isso.

Como vivo muito bem com o Benfica tricampeão. Parece-me evidente de que será o Benfica novamente campeão, este ano. Mas a verdade é que o Sporting andou lá perto e já há muitos anos não me convencia de que talvez fosse este ano, de que talvez fosse desta que o Sporting voltava a sair à rua para festejar um título cada vez mais raro. E, portanto, acompanhei o campeonato com mais atenção. Li mais jornais do dia seguinte, vi mais debates televisivos feitos por adeptos que se espumam de raiva, que se insultam e mentem e que são assumidamente e desavergonhadamente tendenciosos e que mesmo perante uma fractura exposta conseguem dizer que nem houve falta, muito menos penálti. Ao fazê-lo, dei-me conta, novamente, de que o ecossistema onde vivem as putas e os doutores está mais vivo do que nunca e de que tem mais poder que alguma vez teve. Penso eu que terá a ver com o facto de o futebol movimentar hoje mais milhões do que algum dia movimentou. E isto já se sabe, um ecossistema que produz muita comida é um ecossistema rico mas brutal, onde só sobrevivem os que aprendem a viver nele. Os restantes, os velhos e os doentes, esses ficam pelo caminho, tornam-se invisíveis, definham e morrem.

E portanto, esta não é uma crónica sobre o Sporting ou sobre o Benfica.

Esta é uma crónica sobre o poder que o Benfica tem nos media portugueses. É uma crónica sobre o exército de bombistas-suicidas, de snipers, de grupos de operações especiais que o Benfica conseguiu infiltrar nos órgãos de comunicação social. São profissionais altamente qualificados, spin doctors com a missão de mentir, exagerar, dobrar, contorcer e distorcer a realidade; que conseguem, num ápice, fazer esquecer um acontecimento para realçar um outro que mais interessa ao seu clube do coração. Há-os de todos os clubes grandes, em Portugal e no estrangeiro. Mas só olhando com algum pormenor é que me apercebi da invasão vermelha aos jornais e canais de televisão nacionais.

E depois, é isto que dá pontos e marca golos? Não, claro que não. Mas ajuda? Ajuda e muito. Mudar a forma como as pessoas olham para um determinado jogador, ou facto do jogo, faz com que mais pessoas se desloquem ao estádio para ver a sua equipa; faz com que mais pessoas acreditem que os outros, os rivais, são levados ao colo e que o mundo é uma terrível injustiça e que os perseguidos são sempre os mesmos e que isto é uma constante batalha de Termópilas e que juntos vencerão e que só a união faz a força e outras coisas do género. E isso dá força. E isso dá suporte e acima de tudo dá mais dinheiro ao clube em questão. 

E é isto importante? Sim e não. No fundo, no fundo, é no futebol e não tem mais consequências do que a habitual desilusão de final de época e uma ou outra irritação pequenina. Mas é também um pequeno mas bem equipado laboratório onde podemos acompanhar o crescimento de fungos maliciosos e perigosos para a saúde da sociedade. No negócio do futebol, no ecossistema onde prosperam o futebol e o jornalismo, podemos adivinhar o que se passa nos outros ecossistemas, esses sim, mais determinantes na nossa qualidade de vida e na defesa dos nossos reais e importantes interesses.



Mas sim, admito, esta é também uma crónica sobre alguém que, embora permanentemente desiludido e sem esperança, ainda arranja espaço para se irritar e revoltar com as putas e os doutores deste planeta. Mesmo que no futebol. Mesmo sem consequências de maior impacto. Irrito-me com estes agentes secretos do Benfica e desejo-lhes a morte (figurativa) por breves instantes. Depois passa-me e convenço-me de que um dia isto dá tudo uma volta e de que o sol nesse dia passará a brilhar no cu de outros (talvez no meu) e de que assim haverá algum equilíbrio e justiça no mundo. Mesmo que seja só futebol. 

quinta-feira, abril 07, 2016

«LARGA A ARMA OU EU LEIO»



Aqui há mais ou menos dez anos, aconteceu-me uma coisa daquelas que, mesmo sem darmos conta, passam a ser as histórias que mais vezes contamos e vamos contar até ao fim, repetindo-a até as pessoas se chatearem de nós.

E portanto, há coisa de mais ou menos dez anos, estava eu e o Marco no clube de comédia dele, e que nos servia a todos de segunda casa, quando entra o Carlos, esbaforido e com ar de puto que tinha acabado de encontrar a revista indecente do irmão mais velho, sorriso bem maior que a boca e os olhos a saltarem-lhe para fora dos óculos. Trazia uma pequena malinha metálica, ao estilo do espião que veio sabe-se lá de onde, e que acompanhou com um «sabem o que é que eu tenho aqui?» Aquelas perguntas a que claramente ninguém sabe dar resposta, pois se o invólucro da surpresa está fechado e bem opaco…

Abriu a malinha metálica e lá dentro vinha uma réplica perfeita de uma arma automática, cromada, pesada, bem mais real do que o nosso conforto aguentava. E diz o Carlos «temos de fazer alguma coisa com isto.» Não se referia, o Carlos, a algo de ilícito ou violento, claro. Na altura tínhamos um grupo de comédia que se dividia entre o stand up comedy e sketches feitos ali mesmo ao vivo. Era isso que ele queria fazer e para levar a palco nessa mesma noite. Passados uns bons quinze minutos tínhamos a coisa delineada e mais ou menos (nada, na verdade) ensaiada. E que era o seguinte:

Eu subia ao palco como que para anunciar os comediantes de serviço dessa noite mas antes anunciava que naquele palco também havia lugar à cultura e que, sendo assim, ia ler alguns poemas cuidadosamente selecionados. Abria o livro e no preciso momento em que ia começar a ler, o Marco, tipo alto e bem largo de ombros, irrompia por entre as mesas e cadeiras de arma em punho e dizia, «larga o livro ou eu disparo!» Confusão, barulho e tal, as pessoas a perceberem claramente a brincadeira e tal, eu muito confuso no palco a dizer que era só um livro, ambiente bastante agressivo e coiso e tal e quando o Marco subia ao palco para me tratar mal e me enfiar uns bem afinados pontapés nos costados – já depois de ter disparado a arma e assustado toda a gente que estava na sala, inclusive os funcionários que já sabiam que a coisa era a brincar – saltava o Carlos do público, de livro em punho, para gritar «larga a arma ou eu leio!».

Repetia-se o ciclo da confusão e do barulho, o Carlos ainda agarrava numa cliente (nunca num cliente, no entanto…) e ameaçava que se a arma não fosse lançada para longe lhe leria umas passagens dum livro. Como sempre, e porque nunca preparávamos a cena até ao fim, improvisávamos um final assim meio cuspido e pronto, o público adorava e ria muito e pedia mais uns copos. Noite feita.

Serve isto para quê? Desde logo para contar a história pela enésima vez e para dizer que os livros sempre foram uma arma – acho até que demos ao sketch o nome de A Palavra é uma Arma. E como arma que sempre foram, sempre foram perigosos por poderem cair nas mãos erradas e serem mal interpretados e mal utilizados. Há uma corrente política, por exemplo, que pegou num livro de um conhecido filósofo alemão e o mundo nunca mais foi o mesmo, mais para mal do que para bem.
E portanto, os livros são armas poderosas e que, bem utilizadas, podem fazer uma montanha de diferença nas vidas das pessoas. Levar alguém à cadeia é que já parece um tudo ou nada exagerado. Ser castigado por escrever, ler ou por difundir livros, sejam quais forem os livros, é coisa da idade média e já não acontece num mundo do século XXI. E no entanto, e no espaço de mais ou menos um mês, o Irão aumenta a recompensa pela morte de Salman Rushdie, ainda por causa do malfadado livro que o cavalheiro escreveu há coisa de umas décadas, e em Angola condenaram-se uns rapazes porque andavam a ler um livro nada simpático para o regime déspota de um certo José Eduardo.

Não é por acaso. Os déspotas têm fama de serem retrógrados e muito agarrados ao dinheiro e ao passado. Por isso mesmo, alguns conseguem o apoio – ou o silêncio que apoia – desse tal movimento político que nasceu de uma interpretação conveniente do tal livro do tal fulano alemão que filosofava umas coisas mais ou menos políticas e que é um movimento ainda muito agarrado ao passado, assim um tudo ou nada, antiquado, a saber a azedo.

Ou seja, os livros continuam a ser uma arma, o que é bom, mas continuam a ser uma arma de duas lâminas, que serve uns e outros, o que é o que tem de ser, mas que nem sempre é porreiro.

E portanto, as coisas são como são. Pelo menos já não se queimam livros a torto e a direito. Ou melhor…