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Bom Karma... ou não!

terça-feira, agosto 04, 2015

TRUE DETECTIVE PASSO EM FALSO



Na década de 80 havia um carro de que gostava muito, o Lancia Delta. Era um carro agressivo, de linhas austeras e, em algumas versões, era uma bomba, um animal selvagem. No início da década de 90 a Lancia decidiu que era altura de renovar a gama Delta e lançou um carro com um visual bem diferente. Lembro-me da minha revolta e de comentar com um amigo «deviam ter-lhe chamado outra coisa qualquer. Isto não é um Delta». 


Hoje, sem a revolta mas com a mesma dose de desilusão, digo o mesmo do segundo tomo de True Detective: não se devia chamar True Detective. Devia chamar-se TO LIVE AND DIE IN VINCI ou THE VINCI CONNECTION ou simplesmente VINCI. E eu sei, é injusto comparar as duas temporadas de True Detective e é ainda mais injusto avaliar esta última à lupa da primeira. Mas a vida é mesmo assim e ninguém no mundo consegue travar as suas expectativas. E também por isso a segunda temporada de True Detective não se devia chamar True Detective.

Pronto, resolvidos que estamos com esta questão dos nomes das coisas, passemos à série propriamente dita (e se ainda não a viram, esta é a altura de pararem de ler ou vão ficar muito irritados comigo).

Quase tudo nesta série é bom que se farta. Os actores estão muito bem, tudo é muito bem filmado e a banda sonora – mais um trabalho de mestre de T. Bone Burnett – é assombrosa e inquietante. E é aqui que começam os problemas, porque a banda sonora é, na verdade, a única coisa inquietante em toda a série. Tudo o resto é de uma banalidade surpreendente, visto e revisto em centenas de filmes e de outras séries que se dedicam a tratar de um assunto, pelos vistos, tão caro aos americanos: os círculos de poder / corrupção / crime organizado / festas secretas com putas de luxo tudo muito bem embrulhado num crime antigo que ficou por resolver e que está (disfarçadamente) no centro de toda a acção e pincelado com personagens que têm mais esqueletos no armário que uma lata tem feijões.

Ou seja, True Detective 2 (chamemos-lhe assim para facilitar) falha estrondosamente onde o seu parente mais velho tinha surpreendido um mundo inteiro: no argumento e na forma como ele é contado. E já se sabe, é o binómio história / realização que torna um objecto destes em algo extremamente viciante e de que apetece falar e teorizar. As teorias em torno de True Detective 1 surgiram porque a série se dedicava, com mestria, a atirar-nos areia para os olhos, nunca revelando a mão, deixando-nos a suspeitar até da nossa própria sombra.

Ao invés, True Detective 2 obriga-nos a criar todo o tipo de teorias porque pura e simplesmente ninguém percebe o que raio se está a passar. O argumento de TR2 (ainda mais simples assim) é um emaranhado tão grande, tão cheio de personagens mais ou menos relevantes, de curvas e contracurvas e de assuntos, que é constante a confusão de quem a vê – exemplo disso, a pergunta tantas vezes repetida sempre que um nome é referido na série: «quem é este?»

TR2 é um passo falhado de forma estrondosa, e prova disso mesmo – e isto é só uma teoria em que acredito com muita força – é que há um antes e um depois dentro da série. Há um antes do grande tiroteio e um depois do grande tiroteio. E este tiroteio foi claramente metido à pressão para que os argumentistas tivessem a oportunidade de fazer reset e simplificar uma história que de tão confusa começava a perder público.

Parte da explicação para a brutal queda de qualidade de TR2 pode residir no facto de que já não Cary Fukunaga quem realiza a série. Foi ele o realizador de todos os episódios de TR1 e foi a sua linguagem que fez daquele objecto uma raridade, completamente original e melhor e mais viciante a cada episódio. TR2 é entregue, como tem sido costume nas séries americanas, a diversos realizadores. Às vezes funciona, às vezes dá nisto.

E volto a admitir que é injusto comparar TR2 com TR1. Especialmente porque uma coisa como TR1 aparece uma vez na vida e fica com o seu lugar bem reservado no tempo e no espaço. E também por isso os produtores deviam ter resistido à tentação de patinarem no sucesso conquistado pela primeira série e abdicarem do nome que lhes deu tanta fama e tanto dinheiro. Não conseguiram e deram um passo falso bem maior do que as suas pernas.  



True Detective 2 é viciante simplesmente, tristemente, porque ninguém quer acreditar no que está a ver e acima de tudo não quer acreditar que não está a gostar e por isso tem de ver mais um episódio, só mais um para ver se alguma coisa faz sentido. É a pior das razões para se continuar a ver uma série, mas é também tão inevitável como as expectativas.

A próxima semana trará o último capítulo de TR2 e, adivinho eu, nenhuma surpresa, nenhum choque de impacto sísmico. Principalmente não trará a perspectiva de uma terceira série. O melhor que pode acontecer agora, a um projecto que teve tudo para mudar este formato, é uma longa pausa para reflexão. Correr atrás de um sucessor por causa da pressão do público – como aconteceu inequivocamente assim que todos se aperceberam que a primeira True Detective era coisa para não dar uma segunda temporada – só vai piorar o que já está mal. Mas neste mundo da televisão, tal e qual como no mundo do cinema, o que manda é o dinheiro e projectos com uma assinatura de autor são animais em extinção que merecem ser acarinhados, guardados no seu habitat e quanto menos se lhes mexer melhor. Assim devia ter sido com True Detective. Não foi e é uma enorme e irreparável pena.